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Quando um personagem vem para a frente dos holofotes

Livro 'A Vida do Garganta Profunda' tem omissões, mas transforma ex-agente do FBI em celebridade

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Por Ubiratan Brasil
Atualização:

Em um original artigo publicado em 2005 pelo Washington Post, o jornalista James Mann apresentava duas esferas que convivem, ainda que incomodamente, no governo americano. De um lado, o Mundo do Talk Show, habitado por indivíduos sempre disponíveis a aparecer na televisão, escrever livros e artigos, participar de palestras. Encaixam-se aí políticos que desejam manter o reconhecimento público mesmo distante do poder. De outro, o Mundo Oculto, que abriga instituições necessárias à manutenção da segurança do governo, como FBI, CIA, forças armadas, e que trabalham na surdina. É nesse segmento que se inseriu William Mark Felt até 2005, quando sua identidade foi revelada por trás do pseudônimo Garganta Profunda. Por algum momento, ainda que a contragosto, ele passeou pelo Mundo do Talk Show, sob o brilho dos holofotes. E, de alguma forma, reforçou sua presença com o lançamento do livro A Vida do Garganta Profunda, escrito em parceria com seu advogado John O’Connor.

 

Veja também:

Leia trecho do livro 'A Vida do Garganta Profunda'

 

O segredo de Felt (1913- 2008), do qual nem a própria família sabia, foi revelado em uma reportagem da revista Vanity Fair, em 2005, escrita por O’Connor: então vice-diretor do FBI, ele era o misterioso homem que ajudara os repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein, do Post, em 1972, com informações secretas sobre o escândalo logo conhecido por Watergate e que culminou com a renúncia do presidente americano Richard Nixon, dois anos depois. O teor das informações tornou-se conhecido, mas detalhes sobre a vida de Felt ainda não tinham sido divulgados.

Foi o que ele pretendeu fazer em A Vida do Garganta Profunda (2006), agora lançado no Brasil, que, de imediato, revela um problema delicado: os fatos mais interessantes sobre sua atuação como informante foram contados por Woodward em O Homem Secreto - A História do Garganta Profunda, lançado aqui pela Rocco no mesmo ano em que saiu nos EUA, 2005. Lá está, nos mínimos detalhes, a história inteira, desde o primeiro encontro casual de Woodward com Felt, na Casa Branca de Nixon, até o desmascaramento do escândalo Watergate - sem antes deixar de passar pelo relato de várias reuniões no meio da noite em uma garagem de subsolo - e, finalmente, a iniciativa de Felt de se revelar como o Garganta Profunda, aos 92 anos.

Até mesmo algumas particularidades que Woodward deixou escapar (como Felt conseguiu, despercebido, marcar alguns exemplares do jornal The New York Times recebidos pelo jornalista, código que indicava que eles deveriam se encontrar?) também não constam no livro do ex-agente. Quando contou a O’Connor sua versão, Felt estava com a memória comprometida, obrigando o advogado a se apoiar ainda em um manuscrito preparado com o filho nos anos 1980, em seus memorandos do FBI, em reminiscências particulares e em muitos comentários que fez à família.

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A partir desse material, O’Connor se dispôs a montar a espinha dorsal da trama, baseada no dilema que martelou a consciência do informante: a obrigação como funcionário do FBI estava acima de seu dever como cidadão americano de expor a verdade? Os fatos já consumados mostram que não, embora Felt tenha se inclinado a justificar seus atos também como forma de proteção dos alicerces do FBI.

O Federal Bureau of Investigation, aliás, é visto sob o olhar condescendente de Felt, que ignora algumas atividades ilegais cometidas pela entidade - como se os fins justificassem os meios - e mesmo sob a suspeita de irregularidades despertada em outras instâncias do governo.

O período do escândalo propriamente dito de Watergate é, claro, o mais interessante do livro. Felt admite ter passado informações erradas ou insuficientes para Woodward, mas sempre se penitenciando pelo fato de que também buscava a verdade. E, curiosamente, ele não gostou do apelido de Garganta Profunda, batendo o telefone na cara de Woodward quando este quis saber sua reação. “A imagem de falante não combinava com Felt, homem muito austero”, garante O’Connor.

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