Perec contrói ficção policial sobre vogal subtraída

'O Sumiço' traz à tona um mundo fantasioso com jogos, intrigas, uma provação para o tradutor

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Por Victor da Rosa
Atualização:

2016 vai só iniciando, mas já há um candidato à altura, no Brasil, para conquistar o título “livro do ano” no campo da ficção: falo d’O Sumiço (1969), do autor Georges Perec (1936-1982), natural da França.

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Clássico dos nossos dias, O Sumiço ficou famoso por não possuir, do início ao fim da intriga, a vogal mais comum da língua original do autor, ou a vogal mais comum (não por acaso) da sua própria alcunha: Georges Perec. Para a nossa língua, o tradutor, Zéfere, faz sumir igual vogal, sob o raciocínio da sua importância para a própria história contada no livro, como justifica no Posfácio da obra.

Tal composição – um lipograma – nunca foi tomada, por si própria, como inovação na história das narrativas, mas o autor dá um rumo magnífico (ou insano...) ao jogo.

Como já foi dito por muitos críticos, Perec foi um dos principais romancistas do OuLiPo, grupo da França distinto ao propor a ficção como um jogo – comparando o artista a “um rato construindo o próprio labirinto, mas do qual busca sair”. Dos livros do autor, alguns já lançados no Brasil, O Sumiço quiçá foi o principal marco do grupo, afinal a causa da sua composição consta na “obra constrangida”, ou por outra, quando o autor limita sua condição criativa.

Perec. Sem nenhuma letra ‘E’ no livro em francês e na tradução para português Foto: AFP

Assim, um dos principais frutos do jogo proposto n’O Sumiço vai dito aqui: o livro acaba tornando a língua um pouco artificial, ou nada natural, afora jocosa, ao forçar malabarismos tanto sintáticos quanto do vocabulário. Só nas páginas iniciais, muitas palavras raras – cardinalício, humílima, campônios, gorja, oblongo, lirial, tridáctila – já nos indicam a companhia do dicionário. O livro solicita um custo nosso – o próprio Perec assumia isso. Mas vamos imaginar o quanto a composição do livro foi custosa para o autor...

Só um aficionado por Perec, como Zéfere, podia traduzir O Sumiço, pois são muitos os obstáculos: fora caçar as palavras mais justas na nossa língua, com limitação igual a do autor, o obstáculo amplia ao notarmos o modo como o próprio Perec conduz sua obra – por formas paradoxais, palavras arcaicas, jogos variados, ritmo complicado. Mais: a vogal sumida, um dos assuntos principais no livro, faz figura, como um fantasma, do início ao fim da intriga.

Não por acaso, no início da história, a situação do protagonista Antoin Vagol já funciona como um aviso: dando uma lida a um livro, Vagol “captava naquilo um imbróglio confuso, topava a toda hora com uma palavra cujo significado ignorava”. O protagonista fala, claro, do próprio O Sumiço.

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Mas toda a obra do autor costuma, por outro lado, compor uma rara façanha: afora sua marca vanguardista, tais livros atraíram, ao longo dos anos, admiração incomum. Com O Sumiço funciona igual. Passadas as páginas iniciais, aos poucos o livro cativa: por conta do domínio total da ficção policial, com viravoltas inusitadas, ou do humor particular do autor, um fino provocador. Digo mais: o livro já brota como um marco na história da tradução no Brasil.

O SUMIÇOAutor: Georges PerecTradução: José Roberto Andrade Féres (Zéfere)Editora: Autêntica (256 págs., R$ 53)* VICTOR DA ROSA É CRÍTICO LITERÁRIO E DOUTOR EM LITERATURA PELA UFSC   

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