'O Buda no Sótão' narra a saga dos japoneses nos Estados Unidos

Julie Otsuka relata histórias da primeira metade do século 20

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Por Guilherme Sobota
Atualização:

A primeira frase do romance O Buda no Sótão, da americana Julie Otsuka, recentemente lançado por aqui pela Editora Grua, é daquelas que jogam o leitor para dentro de um universo ficcional no mesmo instante: “No navio éramos quase todas virgens”. A partir dessa sentença, a escritora se propõe a contar a história de uma geração de japonesas que, na primeira metade do século 20, por vários motivos, cruzou o Pacífico para chegar à Costa Oeste dos Estados Unidos e fazer a vida. A história, incrível e verdadeira, é pouco contada: mesmo nos EUA, ela é pouco estudada e discutida. Por aqui, chega como novidade.

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O romance - vencedor do Prêmio PEN/Faulkner de 2012, um dos mais importantes da ficção de língua inglesa e traduzido para 19 idiomas - começa com a migração em massa nas primeiras décadas do século e, dividido em capítulos que sugerem fases (Primeira Noite, Brancos, Bebês, etc), conta uma verdadeira saga de milhares de famílias formadas por japoneses e japoneses-americanos, desde a busca pelo trabalho até o desempenho exemplar, a construção de patrimônios, as relações familiares, com os americanos natos - e a remoção, esse o fator decisivo do livro.

A Ordem Executiva 9066, assinada pelo então presidente dos EUA Franklin D. Roosevelt, em fevereiro de 1942, autorizou a Autoridade de Guerra a remover os japoneses e seus descendentes da Costa Oeste para campos de concentração mais ao interior do país. “Foi por isso que precisei escrever esse livro”, diz Julie Otsuka, em entrevista ao Estado por telefone, de Nova York, onde vive e trabalha hoje em dia.

Japonesas. Em foto de 1937, Dorothea Lange retrata mãe e filha na Califórnia Foto: Dorothea Lange/Library of Congress

“Mesmo entre os japoneses americanos, não falamos muito sobre isso. É considerado um episódio muito vergonhoso. Os EUA são uma nação que não quer lembrar algumas partes de sua História. A maioria das pessoas gostaria de esquecer.” 

Foram nove anos de trabalho de pesquisa e lapidação do livro, que passaram por leituras de livros de História, histórias orais, jornais da época. “Viajei por todo o país conversando com as pessoas e, mesmo os mais velhos não sabem, e muitos jovens desses dias não ouviram sobre isso nas aulas de História. Como isso pôde acontecer?”, questiona.

Segundo Julie, havia nos japoneses recém-chegados à América uma característica asiática de aceitar o que a vida impõe: dar crédito à própria fé. Esse sentimento misto de impotência, assertividade e conformismo permeia todo o livro.

“Por que as pessoas (americanas) não protestaram? Algumas dizem que não sabiam na época, mas havia placas nas ruas dizendo que pessoas seriam mandadas embora”, explica. “Minha mãe diz que, quando eles retornaram, ela estava no colégio, ninguém perguntou nada. Foi como se ela tivesse chegado no dia anterior. Ninguém perguntou onde ela esteve.” A Ordem Executiva foi revogada em janeiro de 1945.

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Linguagem. O trabalho com a língua é outro fator fundamental do livro, narrado quase sempre na primeira pessoa do plural. “Uma de nós cometeu o engano de se apaixonar por ele, e ainda pensa nele dia e noite. Uma de nós confessou tudo para o marido, que bateu nela com um cabo de vassoura e depois deitou no chão, chorando. (...) Uma de nós disse tudo para o marido, que a perdoou e acabou confessando alguns pecados que também cometera. Tenho uma segunda família em Colusa. Uma de nós não disse nada para ninguém e, aos poucos, perdeu a cabeça”, diz o narrador em um trecho. 

O equilíbrio peculiar entre a narração no plural e o êxito em delinear personagens em meio à multidão é um dos motivos do livro ter levado tantos prêmios e distinções - além do PEN/Faulkner, foi reconhecido pela Academia Americana de Letras, pelo IMPAC Dublin, e finalista do National Book Award, citado entre os melhores do ano por jornais como o The New York Times e o Los Angeles Times.

A escolha da primeira pessoa do plural foi, segundo a escritora, decorrência da pesquisa. “Primeiro, pensei ‘isso é loucura, nunca serei capaz de narrar um romance inteiro nessa voz’, mas, depois que comecei, pareceu a voz perfeita para o material”, explica. Acabou sendo, segundo a própria, um livro quase escrito para ser ouvido em voz alta. “Era a única voz que eu poderia usar para contar essa história”, afirma. 

Antes de estrear na literatura com o romance When the Emperor Was Divine (ainda sem edição brasileira), em 2002, aos 30 anos, Julie estudou artes visuais na Universidade de Yale. “O processo é muito similar, existe a disciplina”, compara. “O pintor dá umas pinceladas que definem a cena de maneira geral, e depois trabalha de maneira muito lenta nos detalhes. É parecido quando faço um parágrafo, um rascunho e, em seguida, devagar, coloco em foco.” Aqui, sem dúvida, conseguiu.

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Leia trecho do capítulo 'Brancos': "Algumas de nós trabalhavam rápido para impressionar. Outras trabalhavam rápido apenas para mostrar que conseguiam apanhar ameixas, arrancar beterrabas, ensacar cebolas e encaixar bagas com a mesma velocidade, se não mais rapidamente, que os homens. Algumas de nós trabalhavam rápido porque tinham passado a infância toda descalças e agachadas nos arrozais, e já sabiam o que fazer. Algumas de nós trabalhavam rápido porque nossos maridos tinham avisado que, do contrário, nos mandariam de volta para casa no primeiro navio. 

Eu pedi uma esposa que fosse capaz e forte. Algumas de nós vinham da cidade e trabalhavam devagar, porque nunca haviam segurado uma enxada. "O trabalho mais fácil que há na América", nos disseram. Outras tinham passado a vida toda fracas e doentes, mas depois de uma semana nos pomares e limoeiros em Riverside, se sentiam mais fortes que um touro. Uma de nós desmaiou antes mesmo de terminar de arrancar as ervas daninhas da primeira fileira. 

Algumas de nós choravam enquanto trabalhavam. Outras preferiam xingar. Mas todas nós sentíamos dores durante o trabalho - nossas mãos se enchiam de bolhas e sangravam, nossos joelhos ficavam arranhados, nossas costas nunca se recuperavam. Uma de nós trabalhava distraída com o belo hindu que cortava aspargos no sulco ao lado, e tudo em que ela pensava era em quanto queria desfazer o turbante branco que decorava aquela enorme cabeça marrom. Sonho com Gupta-san todas as noites. Algumas de nós cantavam sutras budistas durante o trabalho e as horas voavam como se fossem minutos. 

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Uma de nós - Akiko, que tinha frequentado uma escola missionário em Tóquio e já sabia inglês e lia a Bíblia para o marido todas as noites - cantava 'Arise, my Soul, Arise' enquanto trabalhava. Muitas de nós cantavam as mesmas músicas que havíamos entoado nas colheitas durante a infância, numa tentativa de imaginar que estávamos de volta ao Japão. Porque se nossos maridos tivessem dito a verdade nas cartas - que não eram mercadores de seda, mas apanhadores de frutas, que não viviam em casa de muitos cômodos, mas em barracas, em celeiros e ao ar livre, nos campos, sob o sol e as estrelas -, jamais teríamos vindo para a América fazer o trabalho que nenhum americano com amor-próprio aceitaria fazer."

O BUDA NO SÓTÃOAutora: Julie OtsukaTradutora: Lilian JenkinoEditora: Grua Livros (R$ 34,90, 144 págs.)

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