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'Nunca houve época tão boa para ser fascista', diz China Miéville

Escritor e político inglês abdica da ficção em prol da precisão histórica em livro sobre a Revolução Russa

Por André Cáceres
Atualização:

“Tímido, de riso fácil, que gosta de crianças e gatos.” Poderia ser a descrição de um usuário do Instagram, mas é como o escritor e político britânico China Miéville nos apresenta a Lenin em seu mais recente livro, que conta a história da Revolução Russa. Para um autor que transita entre a ficção científica e a fantasia urbana, a vida real pode ser tão fantástica quanto os cenários espetaculares de sua literatura, e é exatamente esse o desafio de Miéville em Outubro, que será lançado pela Boitempo no seminário 1917: O Ano Que Abalou o Mundo, de 26 a 29 de setembro, no Sesc Pinheiros.

O escritor e político inglês China Miéville Foto: Kate Eshelby/Boitempo

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“Eu já havia escrito não ficção, mas nunca algo nessa escala”, admite Miéville em entrevista ao Estado. “Há um grande número de livros extremamente bons sobre a Revolução Russa, mas eles tendem a ser relatos da época ou livros acadêmicos”, conta ele, que escreve para não iniciados.

Em Outubro, Miéville criou uma regra para si mesmo: “Nada do que transcorre, nada do que é descrito, desde os mínimos detalhes, foi inventado por mim”, explica o escritor, que abraçou as restrições intrínsecas à não ficção em prol da precisão histórica. “Não se pode criar algo para tornar mais palatável. Você tem que encontrar uma forma de explicar os fatos que mantenha a história seguindo adiante, mas que faça jus a essas questões.”

Uma das estratégias foi contar minúcias como a menina nobre que chorou quando as súplicas pelo czar foram puladas nas preces escolares: “Agora, ela estava tropeçando em desconhecidas palavras substitutas, insegura de como pronunciar ‘Vamos orar pelo Governo Provisório’”. Esses pequenos dramas humanos tornam o livro mais interessante do que o conteúdo de atas de reuniões, mas até mesmo nesses momentos o próprio Miéville ironiza algumas discussões bizantinas que se seguiam “como em uma comédia de Beckett, fiel a algum ciclo autotélico de comitês geradores de comitês”.

Ativista de esquerda, Miéville admite temor pela atual polarização política no mundo. “Nunca houve uma época tão boa para ser fascista. Mas abruptamente no Reino Unido não houve, nos últimos 50 anos, um tempo tão bom para ser socialista”, analisa. “Para se combater a extrema direita, é necessário lutar pela esquerda. A melhor maneira de agir em tempos perigosos é com ousadia política e teórica em vez de ter cautela excessiva.” 

Mesmo os livros de ficção de Miéville, como Estação Perdido e A Cidade & a Cidade, têm um viés marcadamente político. “Não escrevo ficção científica buscando uma agenda política”, ressalta o autor. “Se você pensa sobre o mundo de uma forma política, isso vai permear sua ficção. Quando eu escrevo, meu trabalho é contar a melhor história possível, mas para mim, a melhor história que eu posso contar terá uma textura política”, completa.

Vindo do sci-fi, é natural que Miéville pense sobre o papel da esquerda em um mundo tão tecnologicamente desenvolvido. “A tecnologia não é nossa inimiga, mas sim o que é feito com ela. Se a robotização fortalecer o poderio do capital e enfraquecer a classe operária, eu não acredito que a resposta seja atacar os robôs, mas sim os desdobramentos dessa tecnologia. Se o mundo se transformar fundamentalmente, essas tecnologias tornarão a vida de todos melhor.” 

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Miéville, a despeito de seu posicionamento, não é laudatório em relação à Revolução. São fortes suas críticas às concessões realizadas pelo regime nos meses e anos iniciais e é notável até mesmo uma sugestão de que a Rússia ainda não havia atingido o estágio de amadurecimento para fazer a Revolução. Em Outubro, China Miéville abdica de suas estórias para contar História. Dessa vez, porém, não há um personagem principal. O protagonista dessa saga não é outro senão o povo.

Capa do livro 'Outubro', de China Miéville 

Outubro Autor: China MiévilleTradução: Heci Regina CandianiEditora: Boitempo 320

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