Nos 70 anos de morte de Mário de Andrade, ainda é tempo de estudar sua obra

Crítico literário questiona se a "eternidade" apenas o transformará no maior intelectual brasileiro da primeira metade do século 20

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Por Silviano Santiago
Atualização:

No ano em que se completam os 70 anos da morte de Mário de Andrade (25/2/1945) e em que a Flip se adianta e valoriza a data, visto a pele de um incômodo Mallarmé e me pergunto se a “eternidade” apenas o transformará no maior intelectual brasileiro da primeira metade do século 20. Começo pela pergunta exigente porque são vários os obstáculos que dificultam armazenar a figura e a obra de Mário no século 21.

Vida e obra ainda estão para e por ser lidas no século 21 Foto: Reprodução

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Nos anos 1920 e nas duas décadas que se seguiram, ninguém foi mais apaixonadamente modernista entre os nossos modernos. Com sua inesgotável correspondência, de notáveis artigos críticos e de crônicas jornalísticas doutrinárias, Mário se transformou no divulgador-mor da vanguarda europeia que, pela rota do Atlântico, fazia às avessas a trajetória do café paulista. Quis ser útil. Não fez arte pela arte, mas, sim, “arte de ação pela arte”.

Em meados daquela década, sua condição de “papa” do modernismo brasileiro é invocada de modo elogioso - e em seguida apedrejada por Graça Aranha - na série de entrevistas que ele e cinco companheiros de geração dão ao jornal A Noite. Ainda hoje vale a pena consultar o volume O Mês Modernista (1994), em que Homero Senna reúne os recortes do jornal carioca, guardados zelosamente por Pedro Nava.

Na década seguinte, em novembro de 1936, Mário dá aos jovens cariocas uma sofrida resposta à pergunta sobre sua aterrissagem na eternidade. Invoca primeiro sua condição de funcionário público na administração paulista: “Eu tirava o escritor de foco, botando o foco no funcionário que surgia. Me suicidei sim porque tinha medo de mim mesmo”. Comenta em seguida: “Vocês não sabem que, ao pesar sem nenhuma piedade as minhas forças de escritor, e reconhecendo elas fracas para uma eternidade, orientei toda a minha obra pra uma utilidade momentânea, mesmo com sacrifício de qualquer ideia de perfeição” (Cartas a Murilo Miranda). 

Mário não foi menos contundente e menos dramático em 1942, quando, em pleno Estado Novo, a Semana de Arte Moderna completou 20 anos. O paulista abre a guarda no auditório do Itamaraty e proclama: “E se agora percorro a minha obra já numerosa e que representa uma vida trabalhada, não me vejo uma só vez pegar a máscara do tempo e esbofeteá-la como ela merece. Quando muito lhe fiz de longe umas caretas”. 

As constatações dolorosas sobre o valor perecível da obra se deslocam de modo unidirecional. Em diálogo franco com a autocomiseração, a eternidade constatará o óbvio: os intelectuais e artistas representativos do seu tempo acabam por espalhar pelo caminho cacoetes que se assemelham aos bordões que tornam célebres atores medíocres. Bordões, Mário os inventou, e muitos se tornaram - à semelhança do poema sobre a pedra no meio do caminho de Carlos Drummond - amados, apropriados e repetidos à exaustão pelos admiradores. Sua definição de conto (“será conto aquilo que seu autor batizou com o nome de conto”) persegue jovens escritores e diletantes como a exitosa Pasárgada de Manuel Bandeira.

Mas não há por que botar fé numa visão diminuída dos artistas desbravadores do Brasil moderno. Não foram intelectuais monolíticos. Pelo contrário. Não é Mário quem confessou em poema de Remate de Males: “Eu sou trezentos... sou trezentos-e-cinquenta”? Como devoto de Cristo, ele também nos teria alertado: Devagar com o andor, que o santo é de barro.

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Mais apressado o caminhar com o andor, mais palpável a atualidade de Mário. O santo é de barro. E é eterno. No chão do século 21, vida e obra se espatifam em trezentos-e-ciquenta fragmentos desvairados. Se apreendidos pela crítica, estarão sendo representados por uma espécie de mapa ferroviário, que revelará a personalidade múltipla e ainda desconhecida de Mário. Como personagem de Albert Camus, o modernista esteve sempre a desenhar para os pósteros o caminho mais jeitoso e único. E a academia e os historiadores caíram no engodo.

É preciso nos liberar da ditadura institucional que trafegou pelo caminho jeitoso e único. É preciso atentar para a multiplicidade dos ramais que se abrem nos centros de gravitação da obra e nos levam a vários e imprevisíveis destinos. Na vasta obra de Mário, cada estação de estrada de ferro é lugar - se não for motivo - para baldeação. Vida e obra ainda estão para e por ser lidas no século 21. Comecemos por arregaçar as mangas.

No milênio globalizado, Macunaíma parece entoar o canto do cisne. No entanto, ensaístas da nova geração retomam com unhas filosóficas e dentes ideológicos a questão indígena pelo viés da “apocalíptica contracultura pós-moderna” (se me permitem a etiqueta). Associam-na à contribuição do afro-brasileiro e à condição da pobreza mundial. Estamos desgostosos de ser modernos e consumistas. Eduardo Viveiros de Castro afirma que os índios “podem nos ensinar a voltar à Terra como lugar do qual depende toda a autonomia política, econômica e existencial. Em outras palavras: os índios podem nos ensinar a viver melhor em um mundo pior. Porque o mundo vai piorar”.

Quando a nova geração de intelectuais picados pela mosca azul do poder ocupa o ministério e as secretarias de cultura estaduais e municipais, querendo fomentar uma arte motivada pelo povo e direcionada pelo engrandecimento igualitário da nação, nada como ter na escrivaninha de trabalho os escritos circunstanciais e definitivos de Mário sobre a recuperação da memória artística popular, a máquina da burocracia, a mediocridade dos políticos... Melhorariam as reflexões enganosas dos atuais donos do assento.

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Por fim, elenco um tópico delicado, que permanece como terra ignota. Em depoimento ao Museu da Imagem e do Som de São Paulo, Antonio Candido esclareceu que Mário “era um caso muito complicado, era um bissexual provavelmente”. Acrescenta em seguida que ele “tinha uma sensibilidade de homossexual”. E constata: “Isto é fora de dúvida, vê-se pela obra dele”. Dá como exemplo os poemas de Girassol da Madrugada (1931), hoje no Livro Azul. Pena que as iniciais do amigo a quem é dedicado o poema só estejam decodificadas em carta a Manuel Bandeira que, por sua vez, se encontra guardada a sete chaves na Casa de Rui Barbosa.

Mas compensa transcrever palavras irretocáveis de outra carta que Mário envia a Manuel Bandeira. Está datada de março de 1931, mês em que escreve os poemas de Girassol da Madrugada. Nela se lê: “Ah! meu irmãozinho, o amor se abancou de novo no meu rancho, mas é bom nem falar porque sou dolorosamente feliz. Isso da gente ficar uma noite inteirinha, quatro horas eu passei! reclinado sobre um corpo alvíssimo e dócil, parolando, descobrindo uma alma espontânea, maravilhosamente descobridora, dizendo coisas incríveis para quem não lê nos livros, e um dedo espantado passeando no nosso rosto, seguindo o caminho das rugas e dos traços já acentuados pela idade, olhos incríveis de assombro não podendo se explicar que possam amar a feiura...”.

Mário, o feio, transcreve em seguida duas estrofes do poema Girassol da Madrugada. Delas retiro estes versos: “Carne que é flor de girassol, sombra de anil, / Eu encontro em mim mesmo uma espécie de abril, /Em que espraia o teu sinal, suave, perpetuamente”.

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Silviano Santiago é crítico literário

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