No centenário de nascimento, obra de Carolina Maria de Jesus é lembrada

Escritora deixou diários de fome, violência e preconceito

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Por Wilson Alves-Bezerra
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No dia 9 de maio de 1958, os leitores da Folha da Noite se depararam com uma reportagem diferente: “O drama da favela escrito por uma favelada”, acompanhada por fotos de uma negra bonita e por fragmentos de seu diário pessoal. Era Carolina Maria de Jesus (1914-1977), migrante do interior de Minas e catadora de papel na hoje extinta favela do Canindé. O texto de apresentação do jovem repórter Audálio Dantas queria conferir à personagem caráter de universalidade: “Sua vida não é melhor nem pior que a dos demais favelados”. Mas ela tinha, sim, algo que a diferenciava de toda a vizinhança: um conjunto de aproximadamente 20 cadernos manuscritos, nos quais escrevia contos, poemas, crônicas, além de seu diário pessoal.

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O repórter conhecera Carolina quando fora fazer um artigo sobre a comunidade miserável que recém se agregava às margens do Rio Tietê. Ao encontrar aquela mulher singular acreditou ter cumprido sua missão, pois a voz que poderia falar melhor sobre a realidade da favela era a dela, não a de qualquer jornalista. 

O texto da mineira Carolina deve ter soado perturbador ao leitor médio do jornal, pois eram as palavras de uma negra pobre, pouco letrada, solteira, mãe de três filhos, que recolhia papelão, garrafas e papéis, os quais vendia para garantir as próximas refeições da família e do porco que criavam nos fundos da casa. Carolina muitas vezes passava fome, padecia de um cansaço crônico, mas, paradoxo maior, nunca deixava de escrever em seus cadernos. Neles, registrava parcimoniosamente o horário em que despertava, seu estado de ânimo, o dinheiro ganho ao longo do dia, com quem conversara, as discussões presenciadas, alguma observação lírica sobre a paisagem, o clima, a condição miserável em que vivia e, por vezes, versos.

Carolina Maria de Jesus ficou conhecida com a ajuda do jornalista Audálio Dantas, que a descobriu na favela do Canindé Foto: Acervo Audálio Dantas

A miséria, sempre associada ao ambiente rural, mostrava-se na cidade grande. Na sociedade que fazia a apologia do progresso, na metrópole que já vivia a cultura do automóvel, as palavras amargas de Carolina certamente causavam impacto. A linguagem, embora estivesse distante do bom gosto médio, era de uma mistura de registros inquietante, por um lado, exercia uma transcrição da oralidade que fazia pensar na “língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros” do Oswald de Andrade, do Manifesto da Poesia Pau Brasil, de 1924. Mas, ao mesmo tempo, notavam-se as marcas de quem tinha uma imagem da escritura que remetia ao léxico rebuscado da poesia parnasiana.

Em dois anos, os primeiros diários viraram livro: Quarto de Despejo, Diário de Uma Favelada (1960). Foi o surgimento de Carolina para uma comunidade de leitores impensável até então: a edição de 10 mil exemplares esgotou-se em uma semana; a brasileira virou tema de reportagem em diversas revistas pelo mundo: Le Monde, Paris Match, Time, Life, entre outras; foi traduzida ao inglês, francês, espanhol, alemão e mais nove idiomas. Estima-se que já tenham sido editados mais de 1 milhão de exemplares de suas obras. Depois de Quarto de Despejo, foram lançados ainda Casa de Alvenaria e Provérbios (1963). Postumamente, publicaram-se, Pedaços da Fome (1982), e, primeiro em francês, Journal de Bitita, em 1982, que só quatro anos depois chegou ao Brasil, como Diário de Bitita (1986). Já nos anos 90, os historiadores João Carlos Sebe Bom Meihy e Robert M. Levine publicaram Meu Estranho Diário, que recolhe longos trechos integrais que escaparam às edições conhecidas ou que nelas figuraram com grandes cortes.

A obra de Carolina Maria de Jesus tem despertado interesse em grande medida por seu caráter sociológico: trata-se de uma nova figura no campo social, portadora de um discurso que se contrapunha ao da “democracia racial” disseminado pelo brasileiro Gilberto Freyre em seu estudo Casa Grande e Senzala. O ódio racial surgia nas páginas de Carolina com uma lucidez notável: “Tempo chegará em que os brancos vão queimar os negros quando morrer para êles não ter direito de ser sepultado. Percebi que a unica coisa que branco não despresa é o voto do preto. So nas épocas elêitoraes é que o preto, é cidadão. Eu penso que o preto do Brasil devia e deve ser tratado e considerado como pré-histórico. Porque êle relembra um passado de inculturas brancas”. Tal fragmento se afina mais à obra de Frantz Fanon, autor de Pele Negra, Máscaras Brancas, do que ao discurso dos otimistas que negam o preconceito no Brasil.

Para além do aspecto de denúncia, há também a discussão em torno à sua literariedade. Os diversos diários da autora trazem uma escrita em que se nota operações de linguagem que estão para além do descritivo. São paralelismos desconcertantes: “Eu vou tomar banho e vou deitar. Não estou com sono porque eu tenho sono durante o dia. E a noite tenho poesia” e “Porque, quem predomina no Brasil são os brancos. E os pretos são predominados”. 

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Há ainda uma atitude outsider e uma autoconsciência em relação à sua condição de escritora: “- Eu desêjei varios empregos. Não acêitaram-me por causa da minha linguagem poética. Porisso eu não gosto de conversar com ninguém” e “Tem dia que eu gosto dos meus filhos. E tem dia que se eu pudesse queria pica-los e repica-los”. Fica evidente por sua escritura que ela escreve em resposta a uma pulsão, mas também a um projeto literário, no qual há contornos definidos. Vejam-se suas preferências estéticas na educação do filho: “Era 6 e meia quando o João apareceu. Mandei êle açender o fogo. Depóis dei-lhe uma surra com uma vara e uma correia. E rasguei-lhe os gibis desgraçados. Tipo de lêitura que eu detesto”.

A oscilação entre a imagem de poeta lírica que, muitas vezes, a autora traz de si fica em desnível evidente com a matéria de sua escrita - a miséria, a violência, o preconceito cotidianos. De Carolina Maria de Jesus se pode dizer que tem a dupla formação das belas letras que encontrou no lixo e da vozes que sua argúcia lhe permitiu escutar nas ruas e na favela.

Passados 100 anos de seu nascimento e 37 de sua morte, Carolina resiste, sobretudo nos Estados Unidos, onde todos seus livros estão disponíveis. Entre nós, é ainda objeto de estudos acadêmicos, mas já não é lida como antes, estando relegada à condição de leitura escolar. O poder de sua escritura vai bem além disso, certamente. 

WILSON ALVES-BEZERRA É ESCRITOR, TRADUTOR E PROFESSOR DE LITERATURA HISPANO-AMERICANA NA UFSCAR

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