Misto de ficção e ensaio, livro de Enrique Vila-Matas passeia pelas artes plásticas

Em entrevista exclusiva ao 'Estado', escritor catalão comentou sua jornada em Kassel durante a Documenta 13, fio condutor de 'Não Há Lugar para a Lógica em Kassel'

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Por Guilherme Sobota
Atualização:

Colocar um escritor conhecido por suas reflexões perenes sobre a literatura no meio da maior mostra de arte contemporânea do mundo e ver o que ocorre: a bela ideia da curadora da Documenta 13, Chus Martínez, em 2012, tem agora seu resultado mais prático publicado em edição brasileira. Não Há Lugar para a Lógica em Kassel é o décimo livro do escritor catalão Enrique Vila-Matas que a Cosac Naify publica no Brasil, e, de acordo com o próprio, representa uma abertura da sua obra em relação às outras artes, que não apenas a literária.

Instalação 'Untilled', de Pierre Huyghe, desempenha papel fundamental no livro Foto: AFP PHOTO / BARBARA SAX PHOTO BARBARA SAX/AFP

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Colapso e recuperação. A literatura de Vila-Matas poderia se equilibrar entre as palavras que foram o mote da Documenta 13, exposição realizada de cinco em cinco anos em Kassel, região central da Alemanha. A 13.ª edição foi notável por suas instalações malucas e pela criatividade vanguardista dos artistas – vide as fotos desta página. Esse rompimento estético contínuo move o romance, que, como sempre na obra do autor, mistura ficção, ensaio e memória.

“Um homem inteligente pode detestar seu tempo”, diz o escritor, por e-mail, ao Estado. “Mas sabe que não pode escapar dele.” Ser contemporâneo, para o autor, é se incrustar no nosso próprio tempo, mas também tomar distância dele. “Creio que aqueles que coincidem completamente com a sua época e concordam em qualquer ponto com ela não são contemporâneos, pois, justamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela”, filosofa o autor – no romance, seu narrador é convidado para passar uns dias em um restaurante chinês em Kassel durante a Documenta, escrevendo à vista do público.

Depois de descrever a relutância inicial em aceitar o convite e acompanhar o autor na viagem à Alemanha, o livro vira um inventário particular dos dias em que esse escritor fictício mas nem tanto (Vila-Matas participou do evento em 2012) passou em Kassel, entre andanças e reflexões intensas sobre o estado geral da arte contemporânea. 

“Pensei (em escrever o livro) já no primeiro dia de minha estada ali (antes nunca), exatamente no momento em que vi que iria me aborrecer muito e decidi me divertir como fosse”, diz o escritor – o impulso definitivo foi a visita à instalação O Impulso Invisível, de Ryan Gander. “Pela placa fiquei sabendo”, diz o narrador, “chocado, que a corrente de ar era artificial e assinada por Ryan Gander. Genial, pensei em seguida. Alguém assinava uma corrente de ar! Maravilhoso.”

O escritor diz então que, neste momento, se deu conta de que se valeria desse “impulso – uma corrente muito otimista e sobretudo criativa – para poder estar ali cinco dias sem nenhum tipo de angústia, ao contrário, cheio de energia e vontade de que tudo que visse me deslumbrasse”.

Apesar de encontrar pelo caminho diversas obras que o incomodam profundamente (no bom e no mau sentido), o narrador diz estar certo da morte da Europa. “Tudo é frio e está esgotado e enterrado desde décadas atrás, especificamente desde que, no continente, se consentiram os primeiros graves erros imperdoáveis. Depois das duas guerras do século passado, a Europa está acabada. Não se respira bem”, garante o escritor.

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"O acorde de fundo que atravessa meu livro – o de um mundo sério que se contrapõe à arte alegre – é fundamental para dar à minha história (europeia e trágica) sua verdadeira profundidade de campo”, afirma. “O tipo de artistas autênticos em que penso é sem dúvida uma verdadeira necessidade.”

Uma das obras em que narrador-autor concentra sua atenção é Untilled, “a incrível e inesquecível instalação de (Pierre) Huyghe”, um espaço de “profunda estranheza”. O título (‘Sem Cultivo’) é um bom resumo: instalada em um parque, a obra reúne uma “esterqueira para a produção de húmus”, um cão galgo espanhol com a pata pintada de rosa, uma estátua cuja cabeça é formada por uma colmeia de abelhas vivas (reproduzida nesta página), plantas psicotrópicas, troncos, blocos de cimento e uma bacia de água putrefata. 

“Nunca vi a ideia da ruptura com a beleza clássica, sempre tão ligada à arte, exposta poeticamente de forma melhor que aquela, com um senso especialíssimo do horror e da elegância”, resenha o narrador, em dos muitos comentários espalhados pelo livro sobre obras e instalações tão ou mais estranhas. Ao ver a obra de Lara Favaretto (também reproduzida aqui), o narrador ironiza: “diante de Monumentary Monument IV, só consegui pensar em As meninas, do pintor Velázquez, e na música de Mozart e Wagner, e estive prestes a cair em um pranto violento”. Para ele, sem dúvida, Kassel é agora o reino da alegria.

Enrique Vila-Matas foi convidado para a Documenta 13 por uma curadora ligada ao universo literário

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“A confusão é maravilhosa”, disse Carolyn Christov-Bakargiev na abertura da Documenta 13, em 2012. Diretora artística da última mostra, realizada a cada cinco anos na Alemanha, a ítalo-americana resgatou o surrealismo, falou de novas formas de política, de sustentabilidade e convidou mais mulheres do que homens para uma edição que, conceitualmente, partiu de duas indagações – “Como se recuperar de um colapso?” (“econômico, ético ou até emocional”) e “Como viver em um mundo em que a palavra de ordem é a globalização?”.

Sim, a confusão de Carolyn Christov-Bakargiev foi maravilhosa em Kassel e agora, este ano, a curadora prepara-se para apresentar seu mais novo projeto, a 14.ª Bienal de Istambul, que será inaugurada em setembro. A mostra turca, que ocorre em uma cidade histórica (antiga Constantinopla), dividida pelo Bósforo e formada por um lado europeu e outro asiático que têm em comum o Mar de Mármara, é intitulada Saltwater (Água Salgada). Nela, os espectadores serão convidados a percorrer um itinerário de obras espalhadas por museus e “espaços temporários” como o Splendid Hotel e a Casa Trotsky, na ilha de Büyükada.

“Ondas em movimento, que sugerem repetição e dispersão, não são levadas em conta ao se medir a velocidade do barco. Há ondas da história e ondas de insurreição, ondas de rebelião e ondas de engajamento quando as pessoas decidem se juntar e desenhar um limite”, escreve a ítalo-americana na apresentação de Saltwater, que conjuga passado e presente.

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Além de curadora e historiadora de arte, Carolyn Christov-Bakargiev é escritora. Se, na Bienal de Istambul, ela tem o Nobel de Literatura de 2006, Orhan Pamuk, como patrono honorário, não é de se estranhar que tenha convidado Enrique Vila-Matas, “um dos maiores contadores de história europeus da contemporaneidade”, destacou, para sua Documenta de 2012. A princípio, conta o espanhol no livro Não Há Lugar para a Lógica em Kassel, ele estranhou a proposta de Carolyn e de seu braço direito, a curadora Chus Martínez. Mas depois, como destrincha em seu relato entre memória e ficção, aquela era uma oportunidade fértil de participar de algo que ainda guarda “o mito das vanguardas”, definiu. / CAMILA MOLINA

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