Livros de quadrinhos mostram as faces sujas do conflito peruano e da Guerra da Bósnia

HQs sobre o Sendero Luminoso e sobre o cerco a Sarajevo tentam entender o que se passou na América Latina e na Europa no fim do século 20

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Por Guilherme Sobota
Atualização:

Quadrinhos são usados com regularidade para retratar eventos reais pelo menos desde o século 19 – agora, no Brasil, chegam às bancas dois livros distintos entre si, mas que contam por meio da HQ a história real de dois conflitos sangrentos do fim do século 20. Sendero Luminoso, dos peruanos Jesús Cossio, Alfredo Villar e Luis Rossell, e Fax de Sarajevo, do norte-americano Joe Kubert (1926-2012).

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O Peru é um país de 30 milhões de habitantes que faz fronteiras com estados do norte do Brasil, mas é quase como se ele estivesse próximo a Sarajevo, na Bósnia e Herzegovina (Europa Oriental), tamanha a distância cultural que separa os centros urbanos daqui e de lá. Bem como a história e o nosso conhecimento médio dela. O Sendero Luminoso é um grupo maoísta que figura na lista de terroristas do governo do Peru, dos EUA, da União Europeia e do Canadá e matou 31 mil pessoas em 12 anos de atividades (1980-1992), de acordo com a Comissão da Verdade do país andino. Fez isso enfrentando uma série de governos corruptos e classistas e forças armadas brutais e criminosas. No meio dos tiros, o povo campesino do interior do país, principal vítima da guerra.

Retratar esse conflito – apurado por uma Comissão da Verdade entre 2001 e 2003 – com algum equilíbrio foi a tarefa a que Cossio, principal roteirista e desenhista do livro, se propôs. “Tentamos justamente transmitir essa Outra História, que por interesses políticos e de classes, foi silenciada ou reprimida”, diz Cossio ao Estado.

Sendero Luminoso. Cossio dá ênfase às histórias sofridas dos camponeses na guerra que matou 70 mil pessoas no Peru Foto: Reprodução

O livro traz à tona uma série de episódios do conflito, iniciado em maio de 1980, que deixam clara a aspiração completamente violenta que tomou conta de todos os “lados” da guerra, mais uma da história sangrenta da América Latina na segunda metade do século 20. 

“Por um lado temos no continente setores sociais largamente marginalizados e explorados, nos quais brotam guerrilhas e subversões”, analisa Cossio sobre os ecos das guerras nas Américas do Sul e Central. “O Sendero Luminoso é um movimento que no princípio capitaliza esse descontento, mas logo se torna contra àqueles que dizia querer libertar. E também há paralelos na maneira como as forças armadas e policiais recorrem ao sequestro, tortura e desaparecimentos como parte da luta contra subversiva.”

Sendero Luminoso. Álbum ecoa na história do Peru a trajetória da América Latina Foto: Reprodução

A violência absolutamente desmedida também foi característica da Guerra da Bósnia (1992-1995), que matou cerca de 100 mil pessoas segundo as estimativas mais recentes, e desalojou mais de 2 milhões. O cerco à capital do país, Sarajevo, é o foco de Fax de Sarajevo, o álbum do norte-americano Joe Kubert, que em 50 anos de carreira na DC criou as imagens mais conhecidas de personagens como Sargento Rock, Gavião Negro e Tarzan.

Kubert era amigo próximo de Ervin Rustemágic, um editor bósnio que ficou preso no cerco a Sarajevo – sua única forma de comunicação com o mundo exterior era via fax, enviados por meio de um contato no ministério para diversos artistas ao redor do mundo. Rustemágic e sua família sobreviveram à guerra e fugiram da Bósnia em 1993 – e no ano seguinte ao fim do conflito, Kubert lançou este álbum, reconhecido com os prêmios Will Eisner e do Festival de Angouleme, na França, notadamente os dois mais importantes do quadrinho mundial.

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Bósnia. Kubert mostra os absurdos da guerra que matou 30 mil civis Foto: Reprodução

“Depois de passar 18 meses no inferno, que deveria ser chamado ‘massacre de civis’ e não ‘guerra’, eu fui bastante contra a ideia de Joe publicar um livro sobre isso”, conta Rustemágic ao Estado, por e-mail, de Celje, na Eslovênia, onde vive desde o fim da guerra e onde mantém sua editora ainda ativa.

Com um traço característico dos comics de super-heróis – e um roteiro que coloca Rustemágic como um verdadeiro homem de ferro (não se engane, as provações eram terríveis) – Kubert conta a história do início da guerra até a fuga da família, um ano e meio depois, tempo suficiente para testemunhar barbaridades inacreditáveis (a ONU estima que 90% dos crimes de guerra foram cometidos pelos sérvios, cujo objetivo político era manter a existência da Iugoslávia). Como por exemplo, sequestrar e estuprar mulheres bósnias a fim de promover uma “limpeza étnica”.

Por motivos óbvios, Rustemágic não gosta muito de falar sobre a Guerra, mas o tom muda quando é questionado sobre sua editora, a Strip Art Features. “Estamos preparando as reuniões para a Feira de Frankfurt, faz quarenta anos que temos um estande lá”, comenta o editor de artistas como o belga Hermann e o espanhol Alfonso Font. Depois da escuridão de Fax de Sarajevo, o leitor pode, pelo menos, esperar algum alívio.

Imagens do livro 'Fax de Sarajevo', do quadrinista americano Joe Kubert Foto: Reprodução

SENDERO LUMINOSO

Autores: Jesús Cossio, Alfredo Villar e Luis Rossel

Trad.: Rogério de Campos e Bárbara Zocal

Editora: Veneta (208 págs., R$64,90)

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FAX DE SARAJEVO

Autor: Joe Kubert

Tradução: Filipe Faria

Adaptação à edição brasileira: Sidney Gusman

Editora: Via Leitura (208 págs., R$79,90)

QUEM É - Joe Kubert, quadrinista

Nasceu na Polônia em 1926, e viveu nos EUA a vida toda, onde criou a Joe Kubert School of Cartoon and Graphic Art, escola dedicada à arte sequencial e com certificado de acreditação. Morreu em 2012.

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