Livro resgata retratos da aristocracia pernambucana da virada do século

Antropóloga visual e pesquisadora da imagem Georgia Quintas mergulhou num acervo de mais de 13 mil imagens, das quais 66 são apresentadas em seu livro

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Por Simonetta Persichetti  
Atualização:

Retratos de família são sempre interessantes. Memória de nossas vidas nos dão respaldo para nos definirmos dentro da sociedade e criarmos nossa identidade. Por meio deles sabemos quem somos e de onde viemos. Mas quando esses álbuns saem dos muros domésticos adentram instituições e se oferecem aos olhos de uma pesquisadora, eles se tornam o olhar de toda uma sociedade.

Os amigos. Sociedade criava sua própria imagem Foto: COLEÇÃO FRANCISCO RODRIGUES/ACERVO FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO

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É dessa forma que o livro da antropóloga visual e pesquisadora da imagem Georgia Quintas nos apresenta raízes de nossa existência. Jogos de Aparência: os Retratos da Aristocracia do Açúcar é um retrato da sociedade pernambucana do final do século 19 e início do século 20 com base no acervo fotográfico da Coleção Francisco Rodrigues, arquivada na Fundação Joaquim Nabuco, no Recife. 

Um mergulho no olhar daquela época, na história das mentalidades, de um Brasil agrário, da cana de açúcar, de um legado colonial, em que a casa-grande e senzala ainda se fazem sentir. Daí a importância do que e porque ser retratado, a imagem como protagonista da nossa história, um desfile de símbolos sociais de costumes que povoaram um período rico e obscuro da sociedade brasileira: “Nos retratos fotográficos há um universo latente impregnado de memória e identidade visual”, escreve Georgia na abertura de seu livro. E é ainda autora que nos lembra no texto de abertura do livro da teoria de sociofotografia lançada pelo sociólogo Gilberto Freire: “A utilização da sociofotografia pode constituir uma visão completa não apenas da história, mas do complexo sociopsicológico e sociocultural de uma instituição, de uma época, de uma sociedade”. 

Durante cinco anos, como pesquisa de seu doutorado realizado na Universidade de Salamanca, na Espanha, Georgia mergulhou num acervo de mais de 13 mil imagens, das quais 66 são apresentadas no livro: “Foram escolhidos retratos de famílias, crianças, homens, mulheres, escravos, casamentos, entre outros temas”, explica a autora. 

Um exercício de perceber as formas de representação daquela época, de como a sociedade gostaria de ser vista e lembrada: “As retóricas fotográficas envolvem sutilezas simbólicas de classes sociais de comprovação de poder e riqueza. A sociedade oligárquica, patriarcal, aristocrática em contraposição à escravidão”. 

Uma sociedade que cria sua própria imagem e identidade ficcional, que afirma como ser lembrada perante o outro. Um olhar a partir do repertório dos dominantes: “Um jogo de aparências condicionado por um olhar europeu”, afirma Georgia, visto que a maioria dos fotógrafos havia herdado o olhar eurocêntrico dos fotógrafos que aqui passaram no século 19. A fase coberta pela pesquisa vai de 1840 a 1920, período que a autora define como amplo e produtivo na atividade fotográfica em Pernambuco, trazendo assim uma trajetória representativa das mudanças dos fenômenos sociais do Brasil. 

Olhar através das fissuras da imagem o que não é percebido à primeira vista, perceber as filigranas de uma sociedade que usa o poder da imagem para se inserir no mundo. O que essas fotografias nos apresentam é a relação entre imagem e percepção, a relação de alteridade, deixar marcado não apenas o personagem retratado, mas a persona representante de determinada sociedade e, portanto, de determinado momento histórico: “Olhar o outro em busca de uma percepção do universo cultural açucareiro”, relata Georgia, que também nos lembra que a antropologia visual, nos ajuda a compreender como o indivíduo vai construindo sua própria identidade diante de uma sociedade patriarcal, escravista, seus modelos e exigências. O uso da imagem para compreender códigos culturais de determinada época. 

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Uma pesquisa de fôlego apoiada na história do Brasil, da antropologia e da sociologia. Um ensaio poético, questionador e crítico. Embora a pesquisa de Georgia Quintas não tenha se iniciado com esse propósito, é impossível não fazer um paralelo com o que estamos vivendo no últimos tempos no Brasil. Um mergulho nas fotografias de uma sociedade desigual, nas imagens que nos mostram as relações de poder daquela época, talvez possam nos ajudar a refletir sobre nosso momento presente. 

JOGOS DE APARÊNCIA – OS RETRATOS DA ARISTOCRACIA DO AÇÚCAR Autora: Georgia Quintas Editora: Olhavê (232 págs., R$ 60) 

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