Livro 'A Capital da Vertigem' flagra crescimento de SP

Obra de Roberto Pompeu de Toledo mostra como a cidade foi de vila a megalópole

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Por Ubiratan Brasil
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Até a metade do século 19, São Paulo era uma cidade provinciana, pequena, desimportante. Pouco diferente da época de sua fundação, em 1554. Assim, não foi à toa que, ao traçar a história de São Paulo das origens até 1900, Roberto Pompeu de Toledo titulou a obra de A Capital da Solidão (Objetiva), lançada em 2003.

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Ao retomar a empreitada de fôlego e detalhar o nascimento da metrópole entre 1900 e 1954, Pompeu definiu bem a fantástica mudança sofrida pela cidade, traduzida no título do novo livro, A Capital da Vertigem, lançado agora pela mesma Objetiva.

De fato, não parece ser a mesma São Paulo – o ritmo de crescimento, impulsionado pela riqueza do café e pela vinda dos imigrantes, foi vertiginoso. A população aumentou exponencialmente, o que alargou os limites do município, especialmente para a zona oeste. Luz elétrica, bondes, fábricas, o desenvolvimento foi frenético.

Avenida São João em 1930 Foto: Fundação Energia e Saneamento

São Paulo também cresceu para cima, com a construção dos arranha-céus, daí ser a capital da vertigem. E, nesses mais de 50 anos de história relatados por Pompeu, a cidade abrigou figuras notáveis, entre políticos e artistas, além de ser o palco de momentos dramáticos como a Revolução Constitucionalista de 1932. Sobre a pesquisa, Pompeu, que estará na próxima Flip, respondeu por e-mail às seguintes questões.

Você acredita que existe uma cidade que se desenha no tempo e no espaço e uma outra, mais secreta, que se revela na vida cotidiana de seus habitantes?

Sim, acredito. Essa cidade “mais secreta” é até mais significativa do que a cidade de tijolo e asfalto. Difícil é capturá-la em suas muitas manifestações. Há uma multiplicidade de vidas cotidianas concorrendo ao mesmo tempo. Algumas delas se fazem presente um pouco por toda parte. Eu destacaria o capítulo 7 do meu livro, intitulado Paesandeu, Vila Mariana e Abaix’o Piques. “Pausandeu” (nome pretensamente afrancesado de Paissandu) fala do mundo dos bordéis (e como havia bordéis, no início do século 20...) tal qual retratado no livro Madame Pommery, de Hilário Tácito. “Vila Mariana” era onde ficava a Vila Kyrial, mansão em que o mecenas Freitas Valle sediava os seus saraus litero-político-musicais. E o “Abaix’o Piques”, o mais reles recanto do reles largo do Piques (atual praça da Bandeira), era a moradia e a sede das aventuras do famoso Juó Bananére, o caricato ítalo-brasileiro das crônicas de Alexandre Marcondes Machado. São três mundos que raramente se tocam, mas que se complementam como fontes das relações entre as classes, os sexos e as nacionalidades (havia muitos imigrantes estrangeiros em São Paulo) no período.

O arquiteto Benedito Lima de Toledo criou uma metáfora que se tornou célebre: São Paulo seria um “palimpsesto” que, de tempos em tempos, receberia uma escrita nova, de qualidade literária inferior. Concorda?

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Do ponto de vista estritamente urbanístico, concordo. Os planos da primeira metade do século 20 eram mais bem pensados. Ou melhor: eram pensados. Os que vieram depois foram contribuições à arquitetura e ao urbanismo do caos. Já não saberia dizer se era melhor viver naquela cidade. São Paulo, como escrevo na abertura do livro, é Maurília, uma das cidades imaginárias de Italo Calvino. Nela, observa-se com enlevo, nos cartões postais, como era graciosa tal praça com um chafariz hoje tragada por uma avenida, ou tal esquina com delicadas construções hoje substituídas por um arranha-céu.

O Obelisco do Largo da Memória é o monumento mais antigo da Capital – tem 200 anos. Quais construções você considera essenciais para narrar a história de São Paulo no início do século 20?

Decisivas para São Paulo são duas obras ainda do fim do século 19, o viaduto do Chá e a avenida Paulista, tratadas no meu livro anterior, A Capital da Solidão. O viaduto libertou São Paulo do ovo em que estava enclausurada, na colina histórica. Imagine-se o que era descer o barranco de um lado, percorrer o matagal do vale do Anhangabaú, atravessar uma das precárias pontes sobre o riacho, lá no meio, continuar pelo matagal e galgar o barranco do outro lado. O viaduto veio a permitir a expansão da cidade para o oeste. O construtor da avenida Paulista, Joaquim Eugênio de Lima, teve a genial intuição de, em vez de rasgar apertadas ruazinhas, abrir uma avenida ocupando todo o dorso do espigão que separa as águas do Tietê das do Pinheiros. Com isso, deixou à cidade o legado de uma via capaz de conferir-lhe, pelo tamanho, pela facilidade de circulação e pelas possibilidade estéticas, uma nova centralidade. Já no século 20, a construção do teatro Municipal foi importante para exigir a urbanização do matagal do Anhangabaú, daí surgindo um parque bem resolvido, bem no centro da cidade (hoje aviltado). Do outro lado da colina histórica, o parque D. Pedro (hoje aviltadíssimo) teve efeito similar, substituindo a antiga várzea alagadiça por um lugar aprazível e facilitando a ligação com os populares bairros do Brás e da Mooca.

Em A Capital da Solidão, você resgatou personagens que estavam esquecidos, como Luis Gama. O que dizer desse período entre 1900 e 1954?

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Não sei se estão esquecidos, mas há no livro uma legião de personagens decisivos, de Antônio Prado (primeiro prefeito) a Ciccillo Matarazzo (criador do Museu de Arte Moderna, das Bienais e do Parque do Ibirapuera). Certamente esquecido é Cícero Marques, que ressuscito em dois momentos: primeiro com um curioso livro em que reconstitui, quarteirão a quarteirão, a rua de São João (antecessora da avenida São João) de seu tempo de jovem; depois, como um dos rapazes convocados por Paulo Prado para aplicar a necessária vaia aos artistas da Semana de Arte Moderna – sem vaia, o que seria daquele evento? A vaia garantiu-lhe lugar de honra na posteridade.

Quando, de fato, São Paulo revela sua vocação de metrópole?

Os especialistas dão várias definições de metrópole e exigem várias condições para que as cidades possam ostentar tal título. Aprendi nas pesquisas do livro que dois equipamentos essenciais, a partir de finais do século 19, são os arranha-céus e os bulevares. São Paulo começa a equipar-se deles nos anos 1920, com a construção da avenida São João, o primeiro bulevar, e do prédio Martinelli. Mas era uma cidade ainda impregnada de ruralidades, como as carroças e os vendedores de leite de cabra de porta em porta, com a cabra portando um sininho que anunciava sua chegada. Outra condição é evidentemente o tamanho. No final do livro, coincidindo com o quarto centenário da cidade, em 1954, São Paulo se torna a cidade mais populosa do País, com 2,8 milhões de habitantes contra 2,6 milhões do Rio de Janeiro. Por essa época também ganha equipamentos culturais, essenciais a uma metrópole, como o Masp e o TBC. Mas ainda exibe um ranço provinciano. É a capital de um Estado, ainda que o mais rico, não a cidade que resume e reflete um País, como é hoje. Não tem a projeção internacional do Rio de Janeiro ou de Buenos Aires. Os mais rigorosos diriam que já tinha fincado as fundações de uma metrópole, mas ainda lhe faltava algo para sê-lo de todo direito.

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A capa do livro traz uma foto da praça da Sé e a catedral ainda incompleta. Seria a transformação do Largo da Sé a mais significativa de São Paulo no período?

A transformação da Sé faz parte da reforma urbanística engendrada nos anos 1910. Insere-se nela, assim como o Anhangabaú, o parque D. Pedro e o alargamento das vias que cercam a colina central, a começar da Libero Badaró. Essa reforma é uma das duas de grande porte no período do livro. A outra é a de Prestes Maia, nos anos 1930/40. Prestes Maia pretendeu que sua reforma dava uma cara “definitiva” à cidade. Sabe-se lá quando uma cidade adquire sua cara definitiva, se é que um dia a adquire, mas até hoje, pelo menos, em linhas gerais, em sua parte central, a cidade tem a ossatura que ele lhe legou. 

A CAPITAL DA VERTIGEM

Autor: Roberto Pompeu de Toledo

Editora: Objetiva

(584 págs., R$ 59,90 em papel, R$ 29,90 e-book)

A importância dos acervos digitais na pesquisa do autor

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Carlos Eduardo Entini

Entre A Capital da Solidão, de 2003, e o novo A Capital da Vertigem, Roberto Pompeu de Toledo presenciou o fenômeno da multiplicação dos acervos de jornais e de outras fontes digitalizadas e disponíveis online. A seguir, o autor dá detalhes desse processo.

Como foi a experiência com a digitalização?

Ter o acervo dos jornais disponíveis online foi fantástico. Pesquisei muito nos jornais, especialmente no Estado, que cobre todo o período do livro, mas também no Correio Paulistano, nas Folhas da Manhã e da Noite e em outras publicações. A internet também oferece teses e livros digitalizados que me foram úteis. No livro anterior, eu tinha que ir a bibliotecas. Desta vez, elas vinham a mim. Outra novidade extremamente útil que não havia ao tempo de A Capital da Solidão é a Estante Virtual. Graças a ela, achei livros que, de outra forma, não acharia.

Os livros do Laurentino Gomes sofreram preconceito da Academia e de alguns historiadores. O mesmo ocorreu com A Capital da Solidão? Acha que vai acontecer com A Capital da Vertigem?

Não sei, não me chegaram manifestações desse tipo com relação ao A Capital da Solidão, mas não me surpreenderia se existissem, e que se manifestem agora com A Capital da Vertigem. A história não é propriedade privada, ou território reservado de caça de ninguém. Considero-me um narrador da história, não um historiador; historiadores não deviam ter ciúme, inveja ou bronca de quem não é historiador. Deviam guardar isso para seus concorrentes diretos e, nada impede que um historiador se permita ser também um narrador da história. A grande maioria não tem competência para isso, mas os poucos que a têm deviam sair a campo, sem medo do olhar atravessado dos colegas.

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