Livraria Leonardo da Vinci, no Rio, aposta em seleção de qualidade e agenda cultural

Em meio à crise, lojas independentes também têm vez

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Por Roberta Pennafort
Atualização:

O sujeito chega a uma livraria e, em vez dos best-sellers de youtubers, do romance-que-deu-origem-ao-filme e dos livros de reportagem sobre escândalos de corrupção, depara-se com uma pilha de obras encapadas por papel craft. Não se pode ler o título nem o autor, há apenas, escritas à caneta, dicas sobre o conteúdo. Uma delas: “Não temos Pokémons, mas seres fantásticos”. “Mussolini e seus herdeiros queimariam”, provoca outra embalagem. “Um livro desagradável”, anuncia outra.

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A chamada “seleção cega” é das novas bossas da recém-reaberta Leonardo da Vinci, instituição carioca que comemora 60 anos no mesmo ponto, um subsolo no centro da cidade, deixando no ar a pergunta: “Se não no seu livreiro, em quem você confiará?”.

Em plena crise econômica, num momento especialmente crítico para o setor do livro, a loja renasce, acreditando na premissa de que livraria pode ser um espaço de descobertas e de ampliação de referências. Comprada em fevereiro e reinaugurada com visual mais moderno este mês, a Da Vinci, fundada em 1952 e preferida de escritores, intelectuais, professores e estudantes por sua seleção acurada de ciências humanas, literatura e artes, mira na volta dos antigos frequentadores e na conquista de novos.

Um dos trunfos é a programação cultural, que inclui, no dia 6 de outubro, o relançamento da obra de Ferreira Gullar por sua atual editora, a Companhia das Letras. Além de debates, sob a coordenação do jornalista Miguel Conde, ex-curador da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), conversas com autores e leituras. À frente da empreitada, o livreiro Daniel Bandeira Louzada rejeita o título de herói, o romântico que salvou a Da Vinci de virar mais uma farmácia.

Daniel Louzada. 'Não há heroísmo, há racionalidade capitalista e uma forte identidade Foto: Fabio Motta/Estadão

“O futuro é das livrarias independentes. Vejo muitas lojas que são assépticas, são mais do mesmo. Mas não se pode ser um não lugar, a Da Vinci nunca foi isso. Ela vai permanecer, mas não porque chegou um salvador. Não há heroísmo, há racionalidade capitalista e uma forte identidade”, diz Louzada, que empenhou ali as economias de 20 anos de profissão. Ele traz a expertise de quem foi, na gigante Saraiva, de vendedor a gerente comercial nacional, na área de interesse geral.

“Nos Estados Unidos, redes como a Barnes & Noble (maior do setor nos EUA) são desestimulantes, o túmulo do livro. Não à toa os concorrentes, que oferecem variedade, se sobressaem. Apesar do avanço da Amazon e das grandes estruturas, a escala humana é importante. Você pode até comprar livro em supermercado, mas não vai encontrar Dostoievski, Drummond ou o novo do Daniel Galera. Temos best-sellers, mas também os nossos best-sellers. Vendemos Kéfera e Thomas Mann”, explica ainda.

Considerada “inviável” por Milena Duchiade, antiga dona e filha do fundador, a Da Vinci reformada é mais convidativa. O antigo salão, de aspecto labiríntico e mal ajambrado, com as mesas e estantes entulhadas que um dia serviram ao apetite literário do cliente mais célebre, o poeta Carlos Drummond de Andrade, agora é amplo e com toques de cor.'O Rio perdeu a cultura das livrarias' As mudanças na Da Vinci vão além da aparência. Os fornecedores foram variados e as relações com os antigos, rediscutidas, uma forma de garantir a chamada bibliodiversidade e de baixar preços - a livraria sempre foi conhecida por vender publicações caras, até por ter feito seu nome em cima dos importados. A venda online deve ser retomada em novembro. O portfólio de editoras se ampliou. Algumas, pequenas, só são encontradas lá. A seleção nada óbvia instiga tanto o leitor de maior repertório quanto o curioso que chega ali pela primeira vez.  A Da Vinci foi por décadas referência em livros raros e trazidos da Europa. As vendas caíram nos anos 1990, com a ascensão das lojas virtuais e a decadência das livrarias de rua e do próprio centro do Rio. A agenda cultural é uma aposta da nova gestão. Os móveis agora têm rodinhas e, se há debates, abre-se um espaço que comporta 50 pessoas sentadas. Um café foi criado e as mesas, com capacidade para 25 pessoas, servem a reuniões de trabalho ou almoços. São formas de aumentar a permanência do cliente na loja. Na semana passada, Miguel Conde mediou uma conversa sobre Toda a orfandade do mundo (Relicário), reunião de ensaios sobre a obra do escritor chileno Roberto Bolaño, com os organizadores, Antonio Marcos Pereira e Gustavo Silveira Ribeiro, e Felipe Charbel, um dos autores. As novas atrações do centro, revitalizado a partir da zona portuária, podem ajudar a Da Vinci nessa fase - o Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), bonde moderno que vem atraindo a curiosidade de cariocas e turistas, tem uma parada bem em frente ao edifício modernista Marquês do Herval, onde fica a livraria. A vizinhança é rica em equipamentos culturais, como a Biblioteca Nacional, o Museu Nacional de Belas Artes e o Teatro Municipal. A notícia da reabertura, após quatro meses de obras, tem animado seu público. “O Rio perdeu a cultura das livrarias. Desde o tempo de Machado de Assis sempre existiu o bate-papo em torno dos livros. Quando soube que a Da Vinci podia fechar, fiquei muito triste, como foi quando fecharam a José Olympio e a Freitas Bastos (também no centro). Estou ansioso para ver como ela ficou”, diz o diplomata e escritor Alberto da Costa e Silva, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), a dez minutos de caminhada, e cliente desde a fundação.

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