Leia um trecho do novo livro de Olga Tokarczuk, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura

A Todavia lança em novembro Sobre os Ossos dos Mortos, da escritora polonesa Olga Tokarczuk, que acaba de ganhar o Prêmio Nobel de Literatura

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A editora Todavia prevê para novembro o lançamento de Sobre os Ossos dos Mortos, o mais recente romance da escritora polonesa Olga Tokarczuk, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2018. O anúncio dos vencedores do Nobel de 2018 e 2019 (Peter Handke) foi feito na manhã desta quinta-feira, 10, em Estocolmo.

Segundo a editora, Sobre os Ossos dos Mortos é um livro subversivo e macabro, que mistura thriller e humor. Discutindo temas como mundo natural e civilização, ele parte de uma história de crime e investigação convencional para se converter numa espécie de suspense existencial.  

A escritora polonesa Olga Tokarczuk, 57 anos, é a ganhadora do Nobel de Literatura de 2018 Foto: Facundo Arrizabalaga/EFE/EPA

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"Dona de uma obra vasta na ficção, e observadora sagaz e crítica da política do Leste Europeu, Olga faz dos seus livros uma celebração do inusitado, da inteligência afiada e do prazer inesgotável da melhor literatura. Uma obra contemporânea, que trata de assuntos urgentes e necessários com humor, graça e intensidade", disse a editora em comunicado.

A tradução de Sobre os Ossos dos Mortos foi feita do polonês por Olga Bagińska-Shinzato. Há outras obras no prelo. O lanlamento seguinte será Viagens (título provisório), publicado anteriormente como Os Vagantes pela Tinta Negra. A obra ganha nova tradução, também a cargo de Olga Bagińska-Shinzato.

Sobre os Ossos dos Mortos será publicado em novembro pela Todavia Foto: Todavia

Leia o trecho inicial de Sobre os Ossos dos Mortos

E agora prestem atenção!Outrora dócil, e em perigosa senda, O justo seguiu seu curso ao longo Do vale da morte.

Com a minha idade e nas minhas condições atuais, deveria sempre lavar bem os pés antes de dormir, caso uma ambulância precise vir me buscar à noite.

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Se tivesse examinado nas Efemérides o que acontecia no céu naquela noite, nem me deitaria para dormir. Entretanto, caí num sono muito profundo; recorri ao chá de lúpulo e tomei ainda dois comprimidos de valeriana. Por isso, quando fui acordada no meio da noite pelo som — violento, excessivo, e por isso agourento — de alguém batendo na minha porta, não consegui me recompor. Levantei às pressas e fiquei em pé junto da cama, vacilando, pois o corpo sonolento, trêmulo, não conseguia dar o salto da inocência do sono para a vigília. Desfaleci e cambaleei, como se estivesse prestes a perder a consciência. Isso tem me acontecido ultimamente, e está relacionado com as minhas moléstias. Precisei me sentar e repetir algumas vezes para mim mesma: estou em casa, é noite, alguém está batendo na porta, e só então é que consegui controlar os nervos. Enquanto procurava os chinelos no escuro, podia ouvir que aquele que tinha batido agora circundava a casa, murmurando. No térreo, na caixa do relógio de luz, guardo gás de pimenta que ganhei de Dionísio por causa dos caçadores ilegais. Foi justamente nele que pensei agora. Consegui achar na escuridão o formato frio e familiar do aerossol e, assim armada, acendi a luz do lado de fora. Olhava para o alpendre pela janela lateral. A neve rangeu e apareceu no meu campo de visão o vizinho que costumo chamar de Esquisito. Estava enrolado numa velha samarra, com a qual às vezes o via quando trabalhava do lado de fora de casa. Debaixo dela podia ver seu pijama listrado e suas botas pesadas para caminhar nas montanhas.

— Abra — disse.

Com um espanto evidente olhou para o meu terno de linho (durmo vestida com as peças que o Professor e sua esposa quiseram jogar fora no verão, e que me lembram da moda antiga e da minha juventude. Assim, combino o útil com o sentimental) e entrou sem pedir licença.

— Vista-se, por favor. Pé Grande morreu.

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Por um instante perdi a fala e, em silêncio, calcei as botas de cano alto e vesti o primeiro casaco de frio que encontrei no cabideiro. Lá fora, a neve, na mancha de luz jogada pelo abajur no alpendre, virava uma ducha vagarosa e sonolenta. Esquisito estava do meu lado, calado, alto, esbelto e ossudo como uma silhueta esboçada com alguns riscos a lápis. A neve caía do seu corpo ao mínimo movimento, como se fosse um cavaquinho polvilhado com açúcar de confeiteiro.

— Como assim “está morto”? — perguntei, por fim, ao abrir a porta, com a garganta apertada, mas ele não me respondeu.

De modo geral, ele fala pouco. Deve ter Mercúrio num signo silencioso, acho que em Capricórnio ou em conjunção, quadratura, ou talvez em oposição a Saturno. Podia ser, também, um Mercúrio retrógrado — que, nesse caso, acarretava discrição.

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Saímos de casa e, imediatamente, nos envolveu esse ar muito familiar — frio e úmido — que nos relembra todos os invernos que o mundo não fora criado para a humanidade, e durante pelo menos a metade do ano nos demonstra a sua hostilidade. O frio atacou brutalmente as nossas bochechas, e emergiram nuvens brancas de vapor de nossas bocas. A luz no alpendre se apagou automaticamente e caminhamos pela neve crepitante na escuridão completa, a não ser pela lanterna de cabeça de Esquisito que penetrava as trevas num único ponto oscilante logo à sua frente. Eu andava na penumbra, saltitando às suas costas.

— Não tem lanterna? — perguntou.

Claro que tinha, mas conseguiria achá-la apenas de manhã, à luz do dia. Com as lanternas é sempre assim: são visíveis só durante o dia.

A casa de Pé Grande ficava um pouco afastada, acima das demais. Era uma das poucas habitadas durante o ano inteiro. Apenas ele, Esquisito e eu vivíamos aqui sem temer o inverno; os outros moradores fechavam a casa já em outubro; esvaziavam os canos de água e voltavam para a cidade.

Desviamos então levemente da estrada, desobstruída, que passa pelo nosso vilarejo e se ramifica em trilhas que levam às respectivas casas. Um caminho pela neve profunda, tão estreito que nos obrigava a pisar colocando um pé atrás do outro, alternadamente, enquanto tentávamos manter o equilíbrio, nos guiava até Pé Grande.

— Não vai ser uma imagem nada agradável — avisou Esquisito, virando-se para mim e, por um átimo, me cegando completamente.

Não esperava nada de diferente. Silenciou por um instante e, em seguida, disse, como se quisesse se desculpar:

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— Fiquei preocupado com a luz acesa na cozinha e o latido desesperado da cadela. Você não ouviu nada?

Não, não ouvi. Estava dormindo, entorpecida pelo lúpulo e pela valeriana.

— Onde ela está agora, essa cadela? 

— Levei embora, está na minha casa. Eu a alimentei e ela pareceu se acalmar.

Mais um instante de silêncio.

— Ele sempre ia dormir cedo e apagava as luzes para economizar, e dessa vez a luz ficou acesa o tempo todo. Uma faixa brilhante de luz sobre a neve, visível da janela do meu quarto. Foi por isso que decidi ir até lá. Pensei que ele poderia estar bêbado, ou que estivesse implicando com o cão, para que latisse daquele jeito.

Passamos por um estábulo arruinado e, logo em seguida, a lanterna de Esquisito caçou na escuridão dois pares de olhos reluzentes, esverdeados, fluorescentes.

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— Olha só, corças — eu disse num sussurro excitado e agarrei a manga de sua samarra. — Chegaram muito perto da casa. Não têm medo?

As corças estavam com as patas imersas na neve até a altura da barriga. Olhavam para nós com calma, como se as tivéssemos apanhado no meio de um ritual cujo sentido não conseguimos entender. Estava escuro, portanto não sabia reconhecer se eram as mesmas jovens que vieram da República Tcheca no outono. Ou será que eram outras, novas? E por que, essencialmente, havia apenas duas? Aquelas eram no mínimo quatro.

— Voltem para casa — eu disse, espantando-as com as mãos. Estremeceram, mas não se moveram. Elas calmamente nos acompanharam com o olhar até a porta. Senti calafrios.

Enquanto isso, Esquisito limpava os sapatos, batendo os pés contra o solo diante da porta de uma casa descuidada. As pequenas janelas haviam sido calafetadas com papéis de vedação e plástico. Feltro betumado cobria as portas de madeira.

Pedaços de lenha de diversos tamanhos recobriam as paredes do vestíbulo. Era, de fato, um interior desagradável, sujo e descuidado. Sentia-se o cheiro de mofo, madeira e terra — molhada e voraz. O odor de fumaça, de longa data, envolveu as paredes com uma camada de gordura.

A porta da cozinha estava entreaberta. Assim, de imediato avistei o corpo de Pé Grande prostrado no chão. Meu olhar roçou nele fugazmente, para logo recuar. Demorou um bocado antes que eu conseguisse olhar para lá outra vez. Era uma cena horrível.

Estava deitado, retorcido numa posição estranha, com as mãos junto do pescoço como se quisesse afrouxar a gola apertada. Ia me aproximando aos poucos, como que hipnotizada. Vi os seus olhos abertos fixados em algum ponto debaixo da mesa. A camiseta suja estava rasgada na altura da garganta. Parecia que o seu corpo tinha travado uma luta consigo mesmo, foi derrotado e se entregou. Fiquei com frio de tanto horror, meu sangue gelou nas veias e senti como se tivesse cedido para o próprio fundo do meu corpo. Ainda ontem havia visto esse corpo vivo.

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— Meu Deus — balbuciei. — O que aconteceu?

Esquisito deu de ombros.

— Não consigo ligar para a polícia, o sinal da operadora tcheca deu interferência outra vez.

Tirei meu celular do bolso e digitei o número que conhecia da televisão — 997 — e, em seguida, uma voz tcheca automática ressoou no aparelho. Aqui é assim. O sinal vagueia, sem se importar com as fronteiras nacionais. Às vezes, a fronteira entre as operadoras ficava por um tempo na minha cozinha. Outras, se fixava durante alguns dias junto à casa de Esquisito ou no terraço. No entanto, era difícil prever o seu caráter quimérico.

— Você devia ter subido a colina — o aconselhei tardiamente.

— O corpo vai enrijecer por completo antes que eles cheguem — disse Esquisito num tom que eu não gostava, particularmente no seu caso: era um tom sabichão. Tirou a samarra e a pendurou no encosto da cadeira. — Não podemos permitir que fique assim. Está com um aspecto repugnante, mas, enfim, era nosso vizinho.

Olhava para o pobre e retorcido corpo de Pé Grande e me custava entender que ainda ontem tinha medo desse homem. Não gostava dele. Talvez não gostar fosse até um eufemismo. Deveria, aliás, dizer: ele me parecia repugnante, horrível. De fato, nem sequer o considerava um ser humano. Agora estava prostrado no chão manchado usando uma cueca suja, pequeno e magro, impotente e inofensivo. Ora, um fragmento de matéria que, em consequência de transformações difíceis de ser imaginadas, virou um ser frágil, isolado de tudo. Fiquei triste, extremamente triste, pois mesmo uma pessoa tão desagradável não merecia morrer. Aliás, quem mesmo merece morrer? Eu também compartilharei o mesmo destino, assim como Esquisito e aquelas corças lá fora; todos nós seremos um dia nada mais que um corpo morto.

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Olhei para Esquisito, na esperança de algum consolo, mas ele já tinha se entregado à tarefa de arrumar a cama revirada, improvisada sobre um sofá-cama em ruínas, então fiz o possível para me consolar sozinha. Passou, então, pela minha cabeça a ideia de que a morte de Pé Grande poderia ser considerada, de alguma forma, algo bom, pois o libertou da bagunça que era a sua vida. E libertou outros seres vivos dele. Eis que, repentinamente, me dei conta dos benefícios da morte e de como ela era justa, à semelhança de um desinfetante ou de um aspirador. Admito, foi o que pensei, e continuo com a mesma convicção.

Era meu vizinho, menos de um quilômetro de distância separava as nossas casas, mas, por sorte, o meu contato com Pé Grande era esporádico. Normalmente avistava-o de longe — sua figura franzina e rija, sempre um pouco instável, se deslocava com a paisagem ao fundo. Ao andar, balbuciava algo e, de vez em quando, a acústica ventosa do planalto propagava os farrapos desse monólogo, essencialmente simples e pouco diversificado, trazendo-os até mim. Seu vocabulário era composto principalmente de palavrões aos quais acrescentava apenas nomes próprios.

Conhecia cada pedaço de terra deste lugar, pois parece que nasceu aqui e nunca foi além de Kłodzko. Era perito na floresta — sabia como usá-la para ganhar dinheiro, o que poderia vender e para quem. Cogumelos, mirtilos, lenha roubada, gravetos para acender o fogo, armadilhas, o rali off-road anual, as caçadas. A floresta alimentava esse pequeno gnomo, e por isso ele deveria respeitá-la, mas não era o caso. Uma vez, em agosto, durante a estiagem, ele incendiou todo o mirtileiro. Liguei, aliás, para os bombeiros, mas não consegui salvar quase nada. Nunca soube por que ele fez aquilo. No verão, caminhava pelas redondezas com uma serra e cortava as árvores cheias de seiva. Quando chamei sua atenção, reprimindo a raiva com dificuldade, ele respondeu de forma simples: “Cai fora, sua velha”. Só que com mais grosseria. Ele sempre ganhava um dinheirinho extra roubando alguma coisa, dando um jeitinho; quando os veranistas deixavam uma lanterna ou um podador no quintal, Pé Grande sempre aproveitava a ocasião para levar tudo e depois vender na cidade. Na minha opinião, inúmeras vezes deveria ter recebido punições, ou até ido para a cadeia. Não sei como sempre saía impune. Talvez tivesse a proteção de certos anjos; às vezes eles tomam o lado errado. (...)

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