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Leia o poema 'Rimance das Donas de Portugal', de Cecília Meireles, descoberto agora

Poema foi escrito há 84 anos e sua leitura ficou restrita à comunidade portuguesa que vivia no Rio no início dos anos 1930

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Por Redação
Atualização:

Em 1931, Cecília Meireles foi convidada a participar da Festa do Centro do Minho, realizada no Rio de Janeiro, e escreveu um poema para a ocasião. Rimance das Donas de Portugal foi publicado logo após o evento na revista Lusitania, que circulou entre a comunidade portuguesa, e só agora, mais de oito décadas depois, foi descoberto. O professor Ulisses Infante, da Unesp de São José do Rio Preto, procurava informações sobre a primeira viagem da poeta à Portugal quando se deparou com o texto, inédito em livro.

A revista circulou de 1929 a 1934 Foto: Reprodução

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Leia ‘Rimances das Donas de Portugal’ na íntegra (a ortografia da época foi mantida)

Este é o singelo rimance Por onde ha-de ir, bem ou mal, Uma palavra que alcance, Ainda que de relance, As Donas de Portugal. Do Portugal Pequenino, Mapa ainda em formação, Entre os dedos do destino Que o tirou como a um menino De dentro do coração...

... Tempo de antanho indeciso, Quando o tropel das pelejas Mata ou exalta de improviso... Paira sôbre êle o sorriso Das Urracas e Tarejas. Enquanto Portugal cresce, Enquanto a conquista escalda, Detrás da luta aparece O vulto, que se esmorece, De alguma Aldonça ou Mafalda...

Figuras mansas, de escassos Perfis, sem côres nem brilhos. Postas nos salões dos paços Entre harpas de timbres lassos E encantos de remedilhos Graça dos tempos distantes. Dos amigos alongados, Em que se contam instantes Da ausência dos inconstantes Falando aos pinos calados.

Tempos de trovas discretas... Sanchas, Brancas, Leanores... Quando havia reis poetas Que, com falas incompletas, Iam trovando de amores... E, entre místicas infantas, De figuras nebulosas, Assim, ó tempo, levantas, Rostos de rainhas-santas Que mudavam pães em rosas...

Outros rostos vêm à tona... Vêm nas águas do Mondego... Uma Dona e outra Dona... E é o fado que as abandona, Perdidas no seu socêgo... “Eu era moça e menina, Por nome, D. Inês...” Era uma vez uma sina... Mais uma espada assassina... E um príncipe... Era uma vez...

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Ó coração que sempre amas! Ó amor, que à desgraça impéles... Como um sol de estranhas flamas, Entre as suas nobres damas, Aparece Leonor Teles. D. Filipa descerra, Do alto, a nova dinastia, Que, após os feitos de guerra, Há de sonhar algum dia Com a forma oculta da terra...

E este cantar se abandona Ao gôsto de recordar A primeira triste Dona De olhos postos sôbre o mar Que os navios aprisiona... Cada noiva real, preciosa... E cada infanta suave, e cada Princesa, mais que uma rosa Sensível e delicada... E Joana, “desesperada, Mui triste... muito chorosa...”

No tempo de náus e velas... No paço se encontrarão Brites e Marias belas E a luz que se anima entre elas, de Francisca de Aragão... Romabisa... Aonia... Sombria Estrada de Pastoral... Ai de quem te viu um dia! (“A ela chamavam Maria E ao pastor Crisjal...”)

Serranas vão para os montes. Poetas vão para naufrágios, Bem além dos horizontes... E o amor faz de olhos fontes Com água de velhos presságios... Anda vagando pelo ar Natércia, desconhecida... Lereno oferece a vida A alguém que lhe queira dar Uma esperança perdida...

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Pastorinhas encantadas... Passam rebanhos, sanfonas... Amadas e desamadas. Misteriosas, tristes Donas... E as Donas belas ou feias Que não teve o Sonhador Que ao seu sonho as fez alheias, Namorado das areias Onde, emfim, morreu de amor...

Madalena de Vilhena Rompe os espaços, demente, E o ar se enche da estrenha cêna Em que o fantasma lhe acena Com gestos de antigamente... Mas a tréva é iluminada E o grande horror se dissipa Quando, empunhando uma espada, Arma os filhos, clama e brada, A, de Vilhena, Filipa.

O rimance encontra agora, Como um pássaro no dia, Poetisas-freiras de outróra: Donas em que o sonho mora Vestido de nostalgia... Velhos nomes de convento: Violante do Céo... Leonarda... E aquela em que o sentimento Faz da desgraça alimento. – Mariana, a que Deus não guarda...

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E as musas passam veladas... Sono de mágua e desengano... Mortas figuras caladas... Grandes paixões torturadas Unindo Garret a Elmano... Donas tôdas silenciosas, Que valeram o universo, Que nunca foram ditosas, E morreram como rosas Dando perfume a algum verso...

Donas mórbidas, vestindo Seus trajos de cemitério, E pôndo um sorriso lindo – Para o fazer mais infindo – Sobre seu grande mistério... Donas de pálido rosto, De violáceas olheiras, Contemplando, no sol posto, Tecer-se o véu do desgôsto Pelas nuvens – fiandeiras...

E as donas que não tiveram Sua morada nos paços... Que entre monte e val nasceram, E em val e monte viveram, Namoradas dos espaços... Que encheram da côr dos astros A anfora clara do olhar, E sonharam náus e mastros, E choraram sóbre os rastros Dos filhos dados ao mar...

Donas simples, Donas fortes, Donas mortas, Donas vivas, Donas de diversas sortes, Donas humildes e altivas, Descuidadas, pensativas, – Este rimance foi feito, Donas! para vos saudar. Em cada verso imperfeito O coração toma o geito De uma vela a navegar...

Sóis tôdas aqui presentes, Donas de atanho r de agora, Da estirpe daquelas gentes De largos sonhos ardentes Partidos por mar afóra. Gentes de perpétua lenda, Que se fizeram assim Como que se aprenda Que a sua vida é uma senda Para rimances sem fim...

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