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Juan Villoro julga as consequências morais de delitos

Em 'Arrecife', publicado agora pela Companhia das Letras, escritor mexicano fala sobre a violência do narcotráfico; leia trecho

Foto do author Antonio Gonçalves Filho
Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

O México vencia a Holanda até os 42 minutos do segundo tempo quando o jogo se inverteu e os mexicanos foram eliminados da Copa. Perder no último minuto parece ser o destino de um país dominado pelo narcotráfico e pela violência, que cresce de forma assustadora depois que milícias populares surgiram em algumas cidades para combater os cartéis. Arrecife, o mais recente livro do mexicano Juan Villoro, trata justamente dessa violência bestial praticada em nome da droga, mas de forma alegórica. 

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Tudo se passa num resort onde os turistas pagam para ser assustados por falsos narcotraficantes e guerrilheiros. Villoro, hoje o principal escritor mexicano, é um dos convidados da 12.ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Ele conversa, no dia 2 de agosto, com o israelense Etgar Keret. Em entrevista ao Caderno 2, Villoro, que colabora com o Estado na cobertura da Copa, fala sobre a natureza do crime organizado em seu país, associando-o aos sacrifícios humanos praticados pelos maias.

Há, porém, uma diferença, diz Villoro. “Pode nos parecer selvagem que os maias matassem o que de mais valioso possuíam para apaziguar a cólera dos deuses, mas essa violência tinha um sentido ritual, enquanto a violência contemporânea é completamente gratuita.”

Multipremiado, o escritor mexicano volta às livrarias com um romance alegórico sobre a violência contemporânea, Arrecife, publicado pela Companhia das Letras antes do lançamento de outro livro seu pela editora Terceiro Nome, o infantojuvenil O Estádio dos Desejos, sobre um garoto que está cansado de ver a seleção perder e pede ajuda ao pai cientista para fazer seu time vencer.

Para completar, sua peça Filosofia de Vida, sobre dois filósofos amigos que se distanciam (um vira recluso e outro assume cargo público), terá uma montagem em São Paulo ainda este ano. Villoro já não pode mais torcer pelo México, após a derrota para os holandeses, mas seu Arrecife é uma prova da vitória mexicana, ao menos no campo literário. Nele, o país continua imbatível, graças a Villoro e escritores como Davi Toscana.

Arrecife é uma profunda investigação – em forma de farsa – sobre as consequências morais dos delitos praticados em solo mexicano. É ao mesmo tempo uma crítica à corrupção mexicana e denúncia contra o hedonismo da sociedade contemporânea, que mata o tédio expondo-se ao perigo. No livro, o ex-roqueiro Mário cria um resort numa ilha paradisíaca para turistas dispostos a correr riscos, submetendo-os a falsos sequestros e violência controlada, praticada por atores disfarçados de guerrilheiros. 

Seu livro fala também de amizade e redenção. Mário tem um grande amigo, Tony Góngora, que perdeu a guerra para as drogas. Viciado, ele também perdeu a memória por causa delas e tenta resgatar o passado perdido na convivência diária com o amigo, ele mesmo vocalista da banda da qual Tony era baixista. Mario dirige La Pirámide, o complexo turístico no Caribe mexicano, e contrata Tony para cuidar de um sofisticado sistema de som impulsionado pelo movimento dos peixes num aquário.

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Tudo parece bem até que Tony começa a duvidar se os atores contratados para simular sequestros dos hóspedes e posar de guerrilheiros são mesmo egressos do teatro ou de alguma quadrilha de criminosos reais. É desse conflito entre fantasia teatral e pesadelo concreto que Villoro tira partido, ao reinventar a ideia do paraíso edênico transformado num inferno dantesco, o México atual. Sobre o livro e o seu país, Villoro fala a seguir.

Um jornalista disse que você escreveu Arrecife baseado no fenômeno sadomasoquista de nossa civilização, que leva turistas do mundo desenvolvido a desfrutar um fim de semana em campos de concentração ou em masmorras da Inquisição. Qual é sua impressão desse desejo mórbido que tem a sociedade contemporânea? O perigo é o melhor afrodisíaco, como defende seu personagem Mario Müller em Arrecife?

O ser humano é um predador que aprendeu a controlar suas reações. Pode prescindir da violência e da tensão, mas não completamente, e necessita de sucedâneos. O perigo resulta sumamente atraente. Basta que alguém diga que uma garota é “muito perigosa” para que ela se torne interessante. Arrecife explora essas reações no plano do turismo. Um dos paradoxos do bem estar é que ele produz tédio. O Terceiro Mundo permite que os europeus e os norte-americanos recuperem uma sensação de aventura que perderam em seus países.

O dinamismo cinematográfico de Arrecife faz lembrar dois filmes que tratam do que você chama de ludopatia, Vidas em Jogo (The Game, 1997), de David Fincher, e Westworld – Onde Ninguém Tem Alma (1973), de Michael Crichton. Que relação tem sua literatura com o cinema e esses dois filmes?

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Não vi esses filmes. Para mim, a literatura é uma arte visual. Quando uma cena convence, não se vê mais letras mas, sim, imagens. Arrecife depende muito das sequências de imagens e de uma montagem parecida com a cinematográfica. Fui roteirista e um fanático pelo neorrealismo italiano, pela Nouvelle Vague e o Cinema Novo brasileiro. Também escrevi bastante sobre Buñuel. Mas, com o tempo, meu interesse pelo cinema como gênero artístico diminuiu.

Sua amizade com o escritor chileno Roberto Bolaño estabeleceu uma espécie de corrente de influência, especialmente quando se tratou de parodiar os clichês da literatura policial. Você acredita que esse seja um gênero literário que precisa ser reinventado, como nos romances antecipatórios de J.G. Ballard?

A dedução do crime me interessa, mas me interessam mais as consequências morais do delito. Propus a mim mesmo que o assassinato de Arrecife levasse a uma investigação e fosse resolvido. Nesse sentido, o romance cumpre as regras do gênero policial. Porém, me interessava que, uma vez tudo esclarecido, as causas seguissem como um enigma: o culpado pode ser inquietamente compreendido e a vítima pode não ser lá tão inocente. Essas misturas entre bem e mal me parecem mais próximas da vida e também mais literárias.

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O narcotráfico é um problema global, mas Arrecife parece falar especificamente do México. O romance, aliás, foi escrito enquanto Felipe Calderón era presidente do país e declarou guerra ao narcotráfico. Você já disse que, se não tivesse passado por esses seis anos de Calderón, não teria escrito Arrecife, mas outro romance. Como abordaria esse mesmo tema se ele fosse escrito hoje? Como acha que deveria ser a luta contra o narcotráfico? 

Vivo no México e não posso ignorar o que acontece. Durante o governo de Calderón foram registradas 80 mil mortes violentas e 30 mil pessoas desapareceram, segundo cifras oficiais. Nesse contexto, me pareceu essencial refletir sobre a violência. O romance se passa numa região histórica maia convertida em zona turística. O hotel que serve de cenário para a trama foi construído à semelhança de uma pirâmide e tem muitos símbolos maias. Meu interesse era contrastar a violência ritual dos maias em seus sacrifícios com a violência contemporânea. Pode nos parecer “selvagem” que os maias matassem o que de mais valioso tinham para apaziguar a cólera dos deuses, mas essa violência tinha um sentido transcendente, ritual. A violência contemporânea, ao contrário, é completamente gratuita.

Você é jornalista, a exemplo de Gabriel García Márquez e muitos outros grandes autores. Você acredita que isso o ajuda como autor literário? Em seus ensaios, chama a atenção um tratamento menos pop da realidade que em seus romances, até mesmo em Arrecife, com suas citações ao universo do rock e à contracultura dos anos 1960 e 1970. O pop é incontornável na literatura contemporânea?

Como os remédios das farmácias, o jornalismo pode ajudar ou prejudicar o escritor. Tudo depende da dose. O jornalista deve estar atento à realidade e estabelecer conexões instantâneas entre assuntos que antes não se relacionavam. Isso pode ajudar a um romancista, que, em algumas ocasiões, se aliena demasiadamente e confia em excesso em si mesmo. A realidade coloca à prova o jornalista: se apresenta de maneira caótica, mas pode ter um sentido, uma lógica, para quem souber buscá-la. Esse ensinamento é muito útil ao romancista.

Como você definiria a nova narrativa mexicana? Você acredita que os jovens escritores mexicanos têm vontade de romper com a grande tradição da literatura mexicana, digo, a de Octavio Paz, de Carlos Fuentes e Juan Rulfo, para cruzar a fronteira literária?

Todo autor se opõe à sua tradição e assim a confirma de maneira crítica. Octavio Paz falava da “tradição da ruptura” para se referir às mudanças que propõem as novas gerações. Há muitos escritores valorosos, especialmente entre aqueles com menos de 50 anos. Caiu o tabu de que o sentido do humor não é profundo ou de que a cultura popular não se mistura com a “alta” cultura. Também morreu o mito de que só é possível viver na capital. Hoje em dia existem escritores estupendos na fronteira nortista, no deserto, nas cidades coloniais, em todas as partes, inclusive no meu bairro.

Quando você vai escrever um romance adulto sobre o futebol?

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Não creio que o escreva. O futebol já chega narrado, está cheio de mitologias, superstições. Cada partida é um relato – e uma Copa é uma antologia de relatos. Mais interessante para um romancista é agregar algo à realidade, criar um universo que exista apenas nessas páginas, e isso resulta difícil no futebol, pois já é um mundo mitologizado. Por isso prefiro escrever crônicas a romances sobre futebol.

Quem é - Juan Villoro, romancista mexicano

Nascido na Cidade do México, em 1956, o autor estudou Sociologia e foi professor de Literatura antes de estrear com El Disparo de Argón (1991). No Brasil foi publicado ainda O Livro Selvagem (2011).

ARRECIFE

Autor: Juan Villoro

Tradução: Josely Vianna

Editora: Companhia das Letras (240 páginas. R$ 39,50 – R$ 27,50 na versão digital)

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O ESTÁDIO DOS DESEJOS

Autor: Juan Villoro

Tradução: Eric Nepomuceno

Editora: Terceiro Nome (120 páginas, R$ 39)

Leia trecho do romance Arrecife, de Juan Villoro, publicado pela editora Companhia das Letras:

"Por que, então, confiava em Mario? Der Meister fora sua solução em face da catástrofe. Os dias do arrecife estavam contados. Sob uma chuva incessante, os hotéis foram fechando um atrás do outro, ou trabalhavam com uma ocupação de dez por cento. A região estava condenada à decadência, mas Mario achou uma solução: os trópicos com adrenalina, aranhas venenosas, excursões que criavam a ilusão de sobreviver por milagre e a necessidade de comemorar de forma tempestuosa. “O perigo é o melhor afrodisíaco”, explicava. “Ninguém se permite tantas licenças quanto um sobrevivente.”

Peterson acabara por aceitar as ideias de meu amigo como um sucesso de ficção científica. Der Meister se referia a suas atividades como “pós-turismo”. Peterson respondia com desprezo: “Não fale comigo em francês”. Via seu jardim do ócio com resignada repugnância: uma Sodoma com piña colada, uma Disneylândia com herpes, um Vietnã com room service.

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Eu tinha chegado a La Pirámide sem vontade de nada, disposto a descobrir que a abstinência não é nada além de um vazio. O Gringo me concedeu a dignidade imaginária de um combatente veterano. Ouviu minhas histórias de viciado e me deu uma guerra de presente. Seu olhar ávido mostrava que eu estivera em Saigon, entre armadilhas de bambus afiados como lanças.

Nem sempre encontrava coisas para lhe dizer. Para mim, os anos 80 e 90 tinham se transformado numa névoa, numa penúria sem substância ou sem outra substância senão desconfiar de minhas memórias (isso era uma lembrança ou um flashback de ácido?).

Mario gostava de repassar o passado comigo, me contar o que havia esquecido. Às vezes me pedia que contasse alguma coisa para o Gringo. De certa forma, falava com seu chefe por meu intermédio."

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