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José Luiz Passos trata, em novo livro, do enigmático Floriano Peixoto

Escritor já tinha dado o ponto final da obra, quando propôs uma modificação à editora: incluir o discurso da então presidente afastada Dilma Rousseff no plenário do Senado

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Por Ubiratan Brasil
Atualização:

O escritor e crítico literário José Luiz Passos promove um estimulante jogo entre passado e presente em seu mais recente livro, O Marechal de Costas, lançado agora pela Alfaguara. Quando recua no tempo, foca em Floriano Peixoto (1839-1895), homem tímido, dono de um silêncio desconcertante e conhecido pelo olhar imóvel. Casado com a meia-irmã, foi obcecado por Napoleão Bonaparte e revelou sua tendência autoritária, característica que determinou seu governo como segundo presidente do Brasil (1891-1894), período em que ficou conhecido como Marechal de Ferro. Ao se voltar para o presente, Passos acompanha a iniciação política de uma cozinheira, suposta bisneta do general, que tenta entender o desmantelo do Brasil a partir das manifestações populares de 2013. Duas figuras marcadas por laços de dependência e ressentimento, traições e solidão. 

Passos já tinha dado o ponto final da obra, quando propôs uma modificação à editora: incluir o discurso da então presidente afastada Dilma Rousseff no plenário do Senado, já na última fase do julgamento do impeachment. Novamente, solidão e frustração com a política. Sobre o assunto, Passos, que recentemente foi surpreendido com a descoberta de um câncer no intestino, já tratado, respondeu às seguintes questões.

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Foi a solidão de Floriano Peixoto que o atraiu?

A grande maioria das biografias que li sobre Floriano Peixoto destaca a sua natureza taciturna e isolada. Foi esse isolamento - de alguém que transformou a política do País - que mais me interessou a princípio. Alagoano, nascido num engenho de açúcar - como eu, que nasci numa usina -, Floriano foi protagonista silencioso e ao mesmo tempo enérgico, numa época marcada por grandes divisões. Falava pouco, frequentemente silenciava frente às questões e encruzilhadas políticas do período, e, mesmo assim, foi peça decisiva na consolidação da República. Ele irritou e reprimiu igualmente os monarquistas e os federalistas, que defendiam uma maior autonomia das províncias. Inaugurou, de certo modo, a figura do líder executivo proveniente das camadas médias e urbanas, que assume o papel de defensor iracundo da unidade nacional. Também inaugurou o jacobinismo em nossa política. Havia um culto à sua figura; os florianistas representaram uma força política radical no período. Ao mesmo tempo, sua vida privada foi marcada pela reserva. Criado pelo tio, casou-se com uma irmã de criação e permaneceu avesso aos ritos sociais do poder. Tímido e autoritário, Floriano é um personagem fascinante. Fiquei admirado por encontrar muito pouco a seu respeito, principalmente no terreno do ensaio e da ficção contemporânea.

É curiosa a figura da cozinheira como um contraponto à de Floriano: como pensou essa relação? Ao longo da redação do romance, entre 2012 e 2016, os eventos políticos no Brasil se acirraram. A meu ver, houve uma clara polarização das forças e opiniões. Numa tentativa de participar disso, e de opinar sobre isso, a meu modo, criei uma linha narrativa contemporânea para o romance. A minha mãe é cozinheira. Trabalhou grande parte da vida como “gerente de alimentos e bebidas” num grande bufê em Pernambuco. Pensei no seguinte. Como ela veria tudo isso? Essa República consolidada por Floriano... como seria se ela fosse a bisneta dele? A conjectura é absurda, concordo, mas me valeu como motor. Ora, com “mão de ferro”, Floriano criou uma República em que figuravam militares, profissionais liberais, a classe trabalhadora e a classe média. No romance, me pergunto: essa República funcionou? O leitor, antes de responder, pense no resultado das eleições para prefeito no Rio e em São Paulo. Essa República funcionou? Talvez aquele “radicalismo” de classe média - inaugurado por Floriano - tenha ignorado as transformações da classe trabalhadora...

Você cita trechos de discursos de Floriano, além de Napoleão, Joaquim Nabuco e de Dilma. Como foi costurar esses trechos?

Queria que as vozes dos próprios políticos, e das forças políticas que representavam, tivessem lugar no livro. Ele é costurado a partir do depoimento de biógrafos, colegas, escritores e jornalistas do período e de hoje. Não temos uma tradição forte, na literatura brasileira, de obras sobre personagens políticos centrais na vida do País - ao contrário do que ocorre nas literaturas de língua espanhola e inglesa. Pesquisei as falas desses políticos e costurei a ação do romance no sentido de expor a contradição entre eles. Não há heróis nem vilões. O que me interessa é o panorama - entre Floriano e a cozinheira - da formação do discurso sobre a coisa pública; sobre a relação entre o indivíduo e o Estado; sobre o afeto e a política. A vida privada de Floriano ecoa, de certa maneira, a natureza privada da esfera de atuação da cozinheira.

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O nacionalismo inspira uma das várias discussões que sacodem o Brasil hoje.

O nacionalismo marca nossa política cultural desde o início. Os dois movimentos literários de maior afirmação identitária foram o Romantismo e o Modernismo; e ambos são, em sua maioria, nacionalistas. Floriano queria um Brasil autônomo, unificado, em mãos de uma classe política urbana, com lastro na burocracia liberal que já caracterizava o final o Império. Creio que ele pensava estar deslocando do poder a velha oligarquia patrimonialista, mas a verdade é que isso só ocorreria depois. Em grande medida, o nacionalismo ainda define a nossa classe política. Hoje, o nacionalismo de esquerda e de direita - se é que ainda faz sentido falar nesses termos - continua promovendo uma visão paternalista, de um Estado provedor e assistencialista. Ao mesmo tempo, a proposta contrária, de um livre mercado radical, associada à noção da cultura como bem a ser consumido pela expansão do crédito, já produziu aberrações e desigualdades flagrantes. O MARECHAL DE COSTASAutor: José Luiz PassosEditora: Alfaguara (200 págs.,R$ 44,90)

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