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Exclusão social na era do fundamentalismo é tema de novo romance

Gonçalo M. Tavares conta drama de jovem com síndrome de Down no livro 'Uma Menina está Perdida em seu Século à Procura do Pai'

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Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Uma trágica coincidência marca o lançamento, no Brasil, do romance Uma Menina Perdida no seu Século à procura do Pai, do escritor português Gonçalo M. Tavares, cuja protagonista, Hanna, é portadora da trissomia 21, ou síndrome de Down. A notícia recente de que os extremistas do Estado Islâmico mataram só este ano 38 crianças portadoras da síndrome ou com outras deficiências físicas ou mentais é uma prova de que as preocupações de Tavares sobre a retomada de práticas cruéis contra os diferentes, que parecia confinada ao passado nazista, são pertinentes.

A diferença fundamental é que, em Uma Menina Perdida em seu Século à procura do Pai, a protagonista é encontrada não por um fanático do Estado Islâmico, mas por um fugitivo sem passado – e com poucas chances de futuro. Marius topa com a figura de Hanna portando uma cartolina com instruções para si mesma numa esquina de uma cidade europeia. É uma espécie de Kaspar Hauser em versão feminina, um ser de quem foi sequestrado o passado. Apenas para quem não se lembra, Kaspar Hauser, com idade próxima da menina, 15 anos, foi encontrado numa praça de Nuremberg, em 1828, trazendo nas mãos uma carta endereçada ao capitão da cidade alemã. Pouco se sabia de seu passado, exceto que, segundo o próprio, fora preso numa masmorra, afastado de seus pares desde o nascimento.

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Verdadeira ou não, a história de Kaspar Hauser, levada ao cinema por Werner Herzog, é também uma parábola sobre a exclusão social. Kaspar viveu com tutores até ser assassinado, em 1833. Alguns suspeitam que era filho ilegítimo de um nobre. Outros, que era um impostor, disposto a extorquir dinheiro dos cidadãos de Nuremberg à custa de chantagem sentimental. Seja como for, Herzog arranjou um título para seu filme que define sua condição no mundo, Jeder für sich und Gott geggen alle (Cada um por si e Deus contra Todos), frase que extraiu do Macunaíma, de Mário de Andrade.

Tavares não é tão pessimista como Herzog, de quem não viu o filme em questão. Em conversa telefônica com o Caderno 2, de Lisboa, o autor revela que não escreveu o romance “propriamente com a ideia de relacionar o drama de Hanna ao de milhares de diferentes eliminados pelo Holocausto”, mas não esquece do decreto assinado por Hitler em 1º de setembro de 1939, em que o Führer autorizou o extermínio de doentes incuráveis, deficientes físicos e mentais (o Aktion 4, programa de eutanásia nazista).

“É claro que a história se repete, como mostra a recente revelação dos crimes do Estado Islâmico contra as crianças com síndrome de Down”, comenta Tavares, concluindo que, “o fundamentalismo sempre começa ou acaba com a questão de eliminar o diferente”. Ao se aproximar de Hanna quando todos passam por ela sem lhe dar atenção, o fugitivo Marius o faz com outro objetivo, o de ajudar a menina a encontrar o pai, esforçando-se para se comunicar com aquela garota que, segundo seu criador, “não está perdida no espaço, mas no século, em alguma esquina entre os anos 1950 e 1970”.

Ou seja, trata-se de um romance sem tempo definido, mas certamente ambientado após o Holocausto. O hotel onde se refugiam Hanna e Marius, cujos proprietários são judeus, ajudar a localizar melhor essa data: todos os quartos têm nome de campos de concentração ou de extermínio e, trágica ironia, o fugitivo, após tatear no corredor escuro, sente-se aliviado ao ver a placa do seu em que está escrito Auschwitz. Será possível ver a luz no fim do túnel com nome tão tenebroso na memória?

“O livro é ao mesmo tempo uma história pessoal e coletiva, a história de um século confundido com uma paisagem desoladora”, resume o autor. “Para mim, é difícil explicar, mas é um momento em que a história se divide antes e depois do Holocausto, que nos conduz a uma fábrica de morte, uma indústria que põe o progresso a serviço de matar”, completa. Tavares sente que o século 21, de forma figurativa, “é uma jangada à deriva”, mais ou menos como os personagens de seu livro, aos quais resta apenas a solidariedade na desgraça.

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A busca do pai pela menina, ele admite, pode, então, assumir uma dimensão alegórica, como no filme de Theo Angelopoulos, Paisagem na Neblina, em que também uma menina, acompanhada pelo irmão menor, sai pelo mundo à procura do patriarca da família (ou do Pai com maiúscula, como insinua o diretor grego, ao filmar a mão de Zeus saindo da água).

“Não se sabe se ela conhece mesmo o pai, mas essa busca é um tema clássico desde Édipo”, argumenta, selecionando um personagem histórico, Stalin, para classificar como trágico esse desamparo coletivo que faz com que as pessoas identifiquem num tirano a figura do paizinho da nação. “É assustador, mas o que vemos é um mundo em busca de um pai, de um rumo, de uma ideologia”, observa. “Estamos todos em um barco sem destino, e esse é, para mim, o verdadeiro tema do romance”. 

Hanna carrega consigo uma caixa com muitas fichas e perguntas, que poderiam se resumir a uma só, feita por Primo Levi: o que é, afinal, um homem? Tavares convida o leitor a tratar dessa e outras questões, envolvendo-se no mistério da fuga de Marius, que por vezes assume o papel de narrador, ainda que sem muito a dizer. A empatia surge naturalmente diante de seres afásicos perdidos no século. Para Tavares, alimentar esse mistério não era sua intenção. Antes, como um personagem em movimento, em fuga, Marius é uma figura enigmática, tanto como Hanna.

Não há necessidade de saber a causa, a razão dessa fuga, mas reconhecer que duas pessoas podem conviver sem conhecer o passado uma da outra”. A questão do afeto, de estender a mão ao outro, segundo Tavares, é o que importa, remetendo ao problema dos refugiados, das migrações, que já marca o século 21. “Estão construindo muros na Europa contra os refugiados que fazem lembrar o de Berlim”, diz. “Essa é uma forma de violência extrema, ofensiva.”UMA MENINA ESTÁ PERDIDA NO SEU SÉCULO À PROCURA DO PAIAutor: Gonçalo M. TavaresEditora: Companhia das Letras (240 págs., R$ 39,90)

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