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Edward St. Aubyn inspira-se em Shakespeare para alternar sentimentos

Escritor britânico foi finalista do Man Booker Prize, em 2006, por ‘O Leite da Mãe’ que será publico junto com 'Por Fim' em 2017

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Por Ubiratan Brasil
Atualização:

A tradição seria motivo de orgulho para o escritor britânico Edward St. Aubyn. Nascido em Cornwall, em 1960, sua família remonta aos nobres do século 17. Mas a experiência acumulada nos primeiros anos de vida e que inspirou os cinco volumes que narram a trajetória de seu personagem Patrick Melrose revela Aubyn como um homem que capturou sombras.

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Escritos entre 1992 e 2011, os cinco livros trazem um grande derramamento de mágoa, raiva, tristeza e dúvida. A Companhia das Letras lança agora os três primeiros – Não Importa, Más Notícias e Alguma Esperança – reunidos em um único tomo, intitulado Romances de Patrick Melrose. Os dois últimos, O Leite da Mãe (indicado para o Man Booker Prize de 2006) e Por Fim, serão publicados em 2017 e em um único volume.

St. Aubyn foi educado em Londres em um colégio interno de elite, pois seus pais logo se separaram. Os problemas, assim, surgiram aos borbotões, como o vício em heroína e uma tentativa de suicídio. Ele só não arriscou dar cabo da vida mais uma vez porque decidiu confessar a um analista a causa de uma dor profunda e inesgotável: quando menino, ele foi estuprado pelo próprio pai. Vestindo essas cicatrizes como estigmas, St. Aubyn transformou a trajetória de Patrick Melrose em espelho de sua vida tortuosa. Cada romance nasce a partir de um evento emocionalmente carregado na vida do protagonista. 

O autor. Ele foi finalista do Man Booker Prize, em 2006, por ‘O Leite da Mãe’ Foto: O autor. Ele foi finalista do Man Booker Prize, em 2006, por ‘O Leite da Mãe’

Assim, em Não Importa, são apresentados a família do personagem e os amigos dela, pessoas que ambicionam uma projeção social que não condiz mais com a sociedade inglesa. Como destaque, David, o tenebroso pai de Patrick, figura que não inspira nenhuma simpatia – há nele algo de réptil, um vilão da cabeça aos pés. E ainda Eleanor, sua mãe, uma americana tão rica quanto infeliz.  A trama se desenrola ao longo de um dia e uma noite na casa da família no sul da França, onde acontece a horrível cena que já se tornou clássica: a do estupro de Patrick, então com 5 anos, por David.

Em Más Notícias, Patrick, agora com 22 anos, vive em Nova York entorpecido por drogas. A narrativa se concentra no período de 24 horas em que o rapaz sai em busca das cinzas do pai. Já Alguma Esperança apresenta a chance de recuperação de Patrick, de volta à Inglaterra, sóbrio e livre das drogas. St. Aubyn pretendia encerrar com essa trilogia a trajetória de Patrick, mas a retomou anos depois com mais dois livros. Sobre isso e seu processo de criação, que revelou um homem desconfortável na sua pele, mas tranquilo em sua mente, ele falou ao Estado, por telefone. 

Os livros alternam alegria e tristeza com idêntica intensidade. Seria basicamente uma história trágica pincelada por toques de humor? De uma certa forma, sim. Busquei apresentar, como cerne da trama, a desestruturação do ser humano com o declínio de uma família. Esse é o tom. Mas, apesar de aparentemente trágica, a história é também uma comédia. Não posso negar que me inspirei muito em Shakespeare, especialmente Hamlet, em que o humor contrabalança com a tragédia.

Você realmente não pensava, no início, em escrever cinco livros? Não, seriam três. Uma trilogia que apresentaria a crise em Não Importa, sua consequência em Más Notícias e alguma tentativa de solução em Alguma Esperança. Quando comecei a escrever O Leite da Mãe, doze anos depois, era para seguir um novo caminho, mas as modificações que passei em minha vida, como o nascimento dos meus filhos, me conduziram a uma personagem – uma mãe compulsivamente filantrópica – que logo identifiquei como alguém da família Melrose. Foi decisivo quando mostrei os rascunhos para alguns amigos que me aconselharam a mudar o nome daquele que seria o protagonista, Mark, para Patrick, pois eu, mesmo relutando, continuava na mesma trilha. Assim, depois de traçar uma trilogia paterna, resolvi escrever outra, simétrica, mas materna. Só que o encerramento de Por Fim foi conclusivo demais e me dei por satisfeito. 

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Eu imagino que não foi fácil escrever sobre assuntos que lhe eram tão próximos... Sim, foi realmente difícil. Muito triste. Eu escrevia rápido, mas vivia em estado de conflito. Más Notícias foi o que me deu mais trabalho porque, além da tristeza, fui tomado por uma nostalgia provocada pela vivacidade com que eu descrevia uma pessoa consumidora de drogas. Determinadas frases tiveram um impacto tão grande que eu precisava interromper a escrita e dar uma volta no quarteirão, para tentar acalmar minha emoção. Demorei para aceitar a publicação dos volumes, pois eu era muito tímido na época e temia não suportar as reações negativas. Só consegui depois, quando já haviam passado 12 anos e eu me sentia limpo e sóbrio.

Apesar da força dos personagens principais, há um outro, Nicholas Pratt, amigo de David, que também se sobressai pela crueldade, pelos comentários ferinos. Você se inspirou em alguém em especial? Não, é totalmente inventado. Na verdade, ele condensa aquela atmosfera que me cercava quando jovem. Enquanto David tem alguns traços do meu pai e Patrick, obviamente, é inspirado em mim, Nicholas traz os valores de um tipo de educação anglo-americana que não existe mais. Eu me senti estranho quando precisei matá-lo, mas sei que muitas pessoas ainda relacionam determinados tipos de maldade a Nicholas. E isso não deixa de ser uma homenagem.

É curiosa também a forma como você fala sobre a alta classe britânica, tratada como Monstro do Privilégio Inglês. Como foi a reação dos leitores ingleses? Bem, temi não poder sair na rua durante um bom tempo ou não ser mais convidado para festa alguma (risos). Na verdade, projetava nas pessoas um sentimento de vergonha que eu mesmo tinha. Mas a recepção foi positiva – nada entusiasmante ou calorosa, mas favorável. Na verdade, fazia tempo que a classe alta não era lembrada em algum romance inglês – Evelyn Waugh promoveu, talvez, o auge da representação. E agora, com meus romances, acho até que se sentiram lisonjeados.

Trecho:

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Patrick desceu pela escada e, ao cravar os olhos... ...na ponta de sua sandália gasta ele viu, em vez dela, o topo de sua cabeça como se de três ou quatro metros acima, no ar, e sentiu uma curiosidade desconfortável pelo garoto que estava vendo. Não era algo exatamente pessoal, como o acidente que eles tinham visto na estrada no ano anterior e que sua mãe disse para ele não olhar. De volta à terra, Patrick se sentiu totalmente derrotado.”

ROMANCES DE PATRICK MELROSE Autor: Edward St. Aubyn Tradução: Sara Grünhagen Editora: Companhia das Letras (488 págs, R$ 59,90 versão impressa, R$ 39,90 e-book).

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