De passagem pelo Brasil, Gumbrecht lança dois livros

Alemão participou da Bienal e falou com exclusividade ao 'Estado'

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Por Redação
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As ideias não são abstratas. Tampouco as obras. Elas têm raiz. Emergem de um solo, de gestos, de expressões. Surgem de uma presença. Estão envolvidas em uma atmosfera, que lhes confere contorno e tom. A história das ideias e a teoria da literatura não se restringem a descrever um sistema das obras. A teoria da literatura ilumina a ressonância de obras e ideias ao longo do tempo. Capta a presença e a atmosfera que as animam. Analisa a latência dessas obras, ideias e atmosferas no presente.

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Hans Ulrich Gumbrecht, carinhosamente conhecido como Sepp, é um dos principais teóricos da literatura em atividade hoje no mundo. Depois de três horas de conversa entre cafés e cigarros, pude enfim compreender o cerne de sua teoria: antes de ser uma ideia, o pensamento é uma fisionomia. Uma presença. Uma atmosfera. A vivacidade de suas páginas e a vivacidade de sua expressão são complementares. A voz é uma inflexão de seu pensamento. Como dizia Pierre Hadot, todo pensamento é uma forma de vida. Não há nenhuma distância entre Gumbrecht e Sepp. 

O leitor brasileiro agora tem acesso à produção mais recente de Gumbrecht-Sepp por meio de dois excelentes livros, lançados na Bienal do Livro de São Paulo: Depois de 1945: Latência Como Origem do Presente e Atmosfera, Ambiente, Stimmung: Sobre Um Potencial Oculto da Literatura, editados respectivamente pelas editoras Unesp e Contraponto. 

Desde Materialidade da Comunicação (1994), Gumbrecht tem se dedicado a uma teoria não hermenêutica da literatura, ou seja, a uma abordagem que contemple os suportes materiais das obras e não apenas seu sentido. Em Produção de Presença: O Que o Sentido Não Consegue Transmitir (2004), essa indagação se sutilizou. A partir do conceito de ser proposto por Heidegger, e por meio de um intrincado debate com pensadores contemporâneos como Jean-Luc Nancy, Gianni Vattimo, Judith Butler, Michael Taussig, Martin Seel e Karl Heinz Bohrer, Gumbrecht critica divisões metafísicas sujeito-objeto e alma-corpo. 

A presença seria um campo de manifestação das obras de arte que escapa a essa cisão representacional. As obras de arte não representam uma realidade que lhes seja exterior. Tampouco se reduzem à materialidade de seus artefatos técnicos. Toda obra existe como presença. E como presença afeta o leitor em diversos aspectos. Uma obra não é nem subjetiva nem objetiva. Uma obra é sempre um intervalo. Uma presença. 

Em Atmosfera, Gumbrecht desdobra os potenciais contidos no conceito de presença, transferindo-os para o novo conceito: Stimmung (atmosfera). A atmosfera é decisiva para a compreensão de alguns dos grandes momentos da literatura. Ela orienta as canções medievais de Walther von der Vogelweide. Mostra-se na tradição da novela picaresca espanhola. Emerge em Shakespeare, em Diderot e no pintor romântico Caspar David Friedrich. A atmosfera também é o fio condutor de Morte em Veneza de Thomas Mann, de Machado de Assis e mesmo das canções de Janis Joplin. 

Mas como articular atmosfera e presença para além das esferas da arte e da literatura? Em certo sentido, esse é o esforço de Gumbrecht em Depois de 1945. Com as memórias pessoais, não necessariamente autobiográficas, Gumbrecht reconstrói a atmosfera do período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial. Marcas de carro, estrelas de cinema, reportagens da revista Life, propagandas e produtos da cultura de massa se mesclam a reflexões sobre Beckett, Sartre, Buñuel, Pasternak, Camus, Celan.

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Imagens da infância na casa dos avôs desenham em tons fugidios o período de desmonte do nacional-socialismo. Canções de Edith Piaf lançam luzes sobre o existencialismo francês. Gottfried Benn, Martin Heidegger, Carl Schmitt são analisados contra o pano de fundo da chamada revolução conservadora, que promovera a ascensão de Hitler. Os brasileiros João Cabral de Melo Neto e Guimarães Rosa, bem como as literaturas hispano-americana e norte-americana, gravitam ao redor desse turbilhão. 

Nessas constelações culturais, Gumbrecht identifica algumas constantes: claustrofobia, sensação de beco sem saída, má-fé, interrogatórios, descarrilamento. Contudo, a vida do pós-guerra seguiu o seu curso, como se tudo tivesse voltado à normalidade. E nisso consiste o grande sintoma. A história perdeu sua capacidade redentora. A política se esvaziou. A guerra persiste sob a forma de latência, mesmo nos ambientes de paz. Mas nós continuamos acreditando na política e na história. Não mais por utopia, mas apenas por não termos outra alternativa. Hoje em dia o sentido da história (teleologia) simultaneamente nos redime e nos aprisiona. 

A imagem da latência é a de um passageiro clandestino. Muitos no trem percebem sua presença. Mas ele é invisível. Ao fim e ao cabo, a mensagem de Gumbrecht deixa uma fresta de esperança. Talvez a história volte a fazer sentido quando percebamos que somos todos clandestinos. E que os trilhos não nos levam nunca à estação que esperávamos. * RODRIGO PETRONIO É ESCRITOR E FILÓSOFO. PROFESSOR DA PÓS-GRADUAÇÃO DA FAAP E DO MUSEU DA IMAGEM E DO SOM (MIS)

Na Bienal

Ken FollettO best-seller de 150 milhões de livros vendidos fala às 10h30, no palco da Arena Cultural

'Carta ao Pai'Denise Stoklos apresenta, no Anfiteatro, 13h, sua leitura de Kafka adaptada à realidade brasileira

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