David Mamet e suas ideias rasteiras sobre teatro

Dramaturgo e roteirista americano prega, em 'Teatro', a desimportância da presença de diretor nas montagens cênicas

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Por Redação
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 A primeira impressão é que só a celebridade do dramaturgo David Mamet justifica a tradução de um livro como Teatro - numa área tão carente de publicações importantes, por uma editora que, no passado, contribuiu muito para o debate teatral. Mas não é só isso. As quatro ou cinco teses anti-intelectualistas que o autor reitera página a página ecoam também uma voz conservadora que se dissemina por toda parte. 

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Como costumam fazer o ex-apaixonado e o ex-comunista, Mamet é raivoso com tudo aquilo que antes o mobilizava no mundo das ideias. A condenação maior é contra o trabalho da direção. Afirma que bons atores sozinhos encenariam a peça melhor do que com a ajuda de qualquer diretor, pois basta uma boa enunciação das falas para que a peça se realize. A contribuição de alguém como Stanislavski - maior referência moderna da atuação - soa a ele hoje como mistificação totalitária, em seu desejo de aprofundar a dimensão interior das personagens e racionalizar o processo criativo. E, analogamente, qualquer dramaturgia que não proclame a condição humana como misteriosa e não se baseie numa trama capaz de gerar expectativa emocional pelo desenlace deve ser considerada lixo ideológico. 

Em outros termos, Mamet faz o jogo regressivo de dizer que a procura de autonomia do teatro moderno - através da arte da encenação - é inútil porque, ao fim das contas, o teatro está aí para ser veículo do deus dramaturgo. Ele está longe de entender que essa arte se organiza no momento histórico do Naturalismo a partir de uma crise da estabilidade dos gêneros, motivada pela percepção de escritores como Ibsen, Chekhov e Strindberg, que recusavam fórmulas teatrais convencionais. Nenhum padrão de tragédia, comédia ou melodrama fazia sentido diante dos novos assuntos, e era preciso romper o acordo entre palco e plateia e pesquisar novas formas de atuação. Mamet não vê que o pouco de talento transmitido à sua própria obra se deve ao esforço de dramaturgos como Williams, O’Neill, Odets e Wilder, no sentido do diálogo com essa encenação crítica experimental.

Mamet. Suas observações são prepotentes Foto: AP

É aceitável a insatisfação do autor com os excessos do “Método Stanislavski” na América, seu psicologismo extremado, seu exagero na caracterização, em que pese o uso notável que fez disso a indústria cultural. Mas seu ódio à pesquisa teatral só se explica pelo desejo reacionário de negar o trabalho coletivo em nome da subserviência a uma única voz autoral. E como é comum no pensamento conservador, o fundinho de verdade serve à generalização fácil e grosseira. 

Como muita gente por aí, ele proclama a existência absoluta de dois polos no trabalho da cultura: de um lado, o mundo insondável do artista, privilégio de poucos, que nenhuma teorização pode nem deve alcançar, para que permaneça também privilégio de classe daqueles capazes de “vencer a repressão”; de outro, o esforço técnico do efeito comunicacional, redutível a algumas fórmulas, que só pode ser aprendido e medido pelo agrado do público, pela eficácia emotiva, que se confunde com o efeito mercantil. Em ambos os casos, o elogio do autoritarismo disfarçado de antiautoritarismo. Alguém já disse que os elefantes domesticados ajudam muito na caça aos elefantes selvagens. É a tarefa a que se propõe esse David Mamet, acreditando-se o mais selvagem deles, numa compilação de observações prepotentes, que cultuam um irracionalismo do tipo erva rasteira, que cresce rápido.

SÉRGIO DE CARVALHO É DIRETOR DA CIA. DO LATÃO TEATROAutor: David MametTradução: Ana Carolina Mesquita Editora: Record (176 págs., R$ 25)

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