Cristovão Tezza situa história de família em meio à crise política do Brasil

Em ‘A Tirania do Amor’, escritor usa personagem economista para explorar questões relacionados ao amor e ao dinheiro

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Por Guilherme Sobota
Atualização:

Desde o sucesso absoluto de O Filho Eterno (2007), Cristovão Tezza vinha se dedicando a compor um retrato da elite intelectual do Brasil com livros como Um Erro Emocional, O Professor e A Tradutora, segundo lugar na categoria romance do Jabuti do ano passado. Com seu novo romance, A Tirania do Amor (Todavia), Tezza investe seu olhar meticuloso para outra elite: a financeira.

Otávio Espinhosa, o protagonista do livro – e o personagem que o narrador cerebral de Tezza acompanha –, é um economista que trabalha numa empresa de investimentos à beira de um escândalo político. Seu casamento está em pedaços e seu filho mais velho, um estudante de jornalismo, rejeita de maneira agressiva toda a vida e a filosofia do pai. Ele ainda tem que lidar com a frustração de ter visto sua carreira acadêmica ridicularizada por uma banca e, na primeira linha do romance, decide renunciar à vida sexual.

Escritor Cristovão Tezza, em sua casa em Curitiba (PR) Foto: Denis Ferreira Netto/Estadão

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O livro, imerso no momento político atual brasileiro, traz a construção de frase cuidadosa e densa que consagrou Tezza como um dos ficcionistas mais importantes do País. O escritor respondeu a algumas perguntas do Estado por e-mail.

Nos seus últimos livros está presente um retrato da elite intelectual do país - e aqui, um retrato da elite financeira. Na sua visão de ficcionista, como essas duas “elites” se aproximam e como elas se afastam?

Um bom sociólogo poderia fazer um recorte mais preciso, mas imagino que a elite intelectual brasileira contemporânea, cuja voz exerce penetração, influência e ressonância nos meios de transmissão de cultura, tem basicamente origem e formação na universidade pública, e é predominantemente da classe média urbana. Boa parte dela vive em torno do aparato do Estado, mas não se confunde com a elite política (Fernando Henrique Cardoso é um caso raro dessa confluência). Este perfil, é claro, tem consequências na concepção de mundo da nossa elite intelectual, que tende a ser estatizante (porque é uma classe média nutrida e defendida pelo Estado) e um tanto nefelibata (porque está relativamente distante da vida real e concreta dos que vivem com menos segurança social e econômica). Não vai aqui juízo de valor: quando faço esse perfil, penso no processo da minha própria formação até os 40 anos de idade.

Já a elite financeira vem de toda parte, porque, afinal, o capital é selvagem por natureza e o Brasil é um país profundamente iletrado. A lei tem seu papel relevante, é verdade, mas é o lastro cultural que determina primordialmente, afinal, se o magnata das finanças vai parar na cadeia por corromper políticos ou se vira referência filantrópica ou nome de fundação cultural.

Você acredita que a ficção literária pode ter algum papel na discussão geral do país?

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A ressonância da literatura, hoje, é praticamente nula; a arte da ficção literária está virando quase que um nicho de mercado. Nesse sentido, o seu papel parece realmente mínimo. Mas não importa; escrever literatura não é uma atividade pragmática. E a ficção sempre tem o ouvido atento para o instante presente. É um modo inconfundível de reconhecimento do mundo e de nós mesmos. A ficção é uma linguagem que comenta todas as outras, sem se confundir com nenhuma delas. No sentido da permanência, Memórias Póstumas de Brás Cubas diz mais do Brasil do final do século 19 do que todos os tratados da época.

Esse me parece o livro em que você toca mais de frente nos assuntos políticos do país, até mesmo pelas profissões dos protagonistas. Quando e como você tomou a decisão de “encharcar” o livro com a política brasileira atual?

A minha decisão como escritor apita muito pouco no resultado final dos meus romances. A primeira ideia que me surgiu foi contar a história de um autor de um livro de autoajuda (eu já tinha até o título: “A matemática da vida”); a profissão de economista surgiu em seguida, e com ele veio o contexto todo do Brasil contemporâneo; imaginei a crise pessoal com a mulher, e a primeira imagem do livro — ele caminhando de manhã para o trabalho, e decidindo sua “renúncia ao sexo”, como resposta à crise. Pronto: estava engatilhado o romance. Entre a primeira ideia e a primeira frase realmente escrita, passaram-se alguns meses. Levei um ano escrevendo o livro. Nesse processo, a intuição e o acaso exerceram, como sempre acontece comigo, papel importante. Como coloquei o tempo do romance no momento presente do país, e a profissão do personagem gira em torno do alto mundo financeiro, a política ocupa necessariamente um grande espaço, mas na perspectiva subjetiva da vida cotidiana, da vida pessoal. É um romance, não um ensaio. Não tive nenhuma preocupação documental estrita. O romance se passa num único dia, mas aparecem referências de momentos políticos diferentes do ano de 2017 — a ficção acaba por criar uma espécie de síntese do espírito do ano.

Esse romance instrumentaliza, pela linguagem, um sentimento muito comum: enquanto governantes, grandes empresários e etc decidem rumos do país, pessoas continuam com seus problemas comuns e cotidianos: nesse caso, um casamento em pedaços, a relação difícil com o filho. Esse sentimento está mais presente na sociedade (e na literatura) nos últimos 5 anos?

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Para a esmagadora maioria da população, pensar nas questões políticas é pouco mais que um passatempo, uma conversa de táxi, uma forma de marcar um espaço ou uma identidade social. Para quase todo mundo, e na medida em que o país parece andar sozinho e sem nenhuma hecatombe institucional, a política exerce uma ressonância apenas de superfície. O que realmente nos preocupa não é a prisão do Lula ou a conversa de garagem do Temer; é se o encanador vem mesmo resolver o vazamento do banheiro, a quantas anda a vida sexual, de quanto será o reajuste do aluguel, se o filho vai tomar jeito, se eu vou passar no exame, se a mulher vai pedir divórcio, se o computador pifou, se o carro bateu, se o namorado está traindo, se compro uma TV nova, etc. Nossa vida concreta é uma cadeia ininterrupta de supostas miudezas, mas são justamente elas que nos deixam em pé. A literatura de ficção trata exatamente disso; trata de pessoas.

“Meu filho é um chavão”, diz Otávio em algum momento. Você pode comentar um pouco a criação deste personagem em específico (o filho)? Ele é produto dessa era? De onde veio a vontade de criar nessa figura praticamente um “vilão” no livro?

Ele não é o “vilão”; filhos revoltados contra pais é um tema universal desde a Bíblia; até Jesus Cristo reclamou do pai ao morrer. Literariamente é um tema clássico. Assim, a relação complicada de Daniel com o pai, e o reverso, a agressividade do pai contra o filho, é um tema atemporal. Crises de adolescência e de afirmação filial são presenças marcantes na vida de todo mundo. No caso do meu livro, Daniel acaba sintetizando a revolta política de esquerda que marcou profundamente a vida brasileira desde o impeachment da Dilma. No caso dele, é uma revolta temperada pela fúria juvenil, o que, aliás, podemos ver em toda parte. Mas veja que o ponto de vista narrativo é sempre o da cabeça do Otávio, o pai; é ele que vê no filho apenas um chavão; e é um ponto de vista que o próprio Otávio contrapõe ao ponto de vista da Rachel, a mãe. Além disso, o livro trata o tempo todo da difícil relação entre Otávio e o seu pai, como se a história se repetisse. Porque, de fato, ela se repete em cada geração. Mudam os signos apenas.

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Na mesma toada, o Otavio é absolutamente dependente das mulheres ao seu redor. Como você nota a mudança com que seus personagens masculinos passaram a se relacionar com as mulheres ao longo do tempo?

Obviamente, as formas culturais das relações afetivas entre os gêneros vêm mudando profundamente nas últimas décadas. Talvez estejamos vivendo no epicentro de algumas mudanças radicais, sobre as quais ainda não temos controle ou mesmo uma visão clara de suas consequências sociais. Veja que a relação de Otávio com as mulheres é de uma natureza completamente diferente da relação que seu pai tinha com elas, embora o pai lhe sirva em vários momentos de referência, para o bem ou para o mal.

Nunca pensei especificamente sobre isso nos meus livros, embora desde os primeiros romances eu tenha procurado dar forma a vozes femininas autônomas.

Lembro que Ensaio da Paixão, que escrevi em 1981, é um livro de passagem. Ao recriar o clima da vida alternativa de uma comunidade de teatro, eu sentia o choque do tradicional machismo e sexismo dos anos 50 e 60 para a explosão igualitária da contracultura que se seguiu.

Numa coluna recente, você critica "a autoridade totalizante (no narrador) que é a marca do nosso tempo”. Parece que uma “autoridade totalizante” se acentua no nosso atual debate político e social, via redes sociais e de polarização raivosa. Como não cair nessa armadilha ao construir uma ficção inserida nesse contexto?

Sim, estamos vivendo debaixo do império de discursos totalizantes, oniscientes e excludentes. A literatura pode ser um ótimo antídoto contra a brutalidade polarizada dos nossos tempos. Ao deslocar o foco das abstrações políticas e teóricas, das massas homogêneas e mecânicas de pensamento e representação, para a incrível complexidade das pessoas, tomadas isoladamente, a literatura de ficção abre um caminho de percepção da realidade que é naturalmente mais generosa e tolerante. O objeto da literatura são as pessoas e suas relações interdependentes. Mergulhar nesse mundo mais com o espírito de descoberta do que de certezas é uma chave essencial da ficção.

O que te atraiu particularmente na filosofia do Spinoza para fazê-lo tão presente nesse livro?

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A presença da Ética de Spinoza no livro foi desses acasos de quem escreve. Estava pensando na consistência do personagem Otávio como autor de um livro de autoajuda chamado A Matemática da Vida, que ele escreve como uma brincadeira, uma aposta que fez com a mulher. Otávio é um matemático brilhante; Spinoza é um marco universal do racionalismo ocidental, e a “Ética” trata de questões humanas com a lógica implacável das equações. Nasceu daí o sobrenome do personagem, Espinhosa, que uma pesquisa me indicou ser uma das variedades dos nomes dos cristãos novos da península ibérica, o que me deu mais uma ramificação de sentidos para a consistência biográfica de Otávio. Enfim, esta vinculação do filósofo com Otávio é mais uma das ironias intuitivas do processo de ficção.

A TIRANIA DO AMOR

Autor: Cristovão Tezza

Editora: Todavia (176 p. R$49,90, R$29,90 o digital)