As memórias sem culpa de um torturador

Prêmio Nobel de 2002, Imre Kertész situa ficção na América Latina para driblar censura stalinista

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Por Redação
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A ditadura acabou. Um torturador aguarda na prisão seu julgamento por crimes cometidos contra presos políticos. Torturas, assassinatos, chantagem sexual, empalação, estupro. O que de mais sórdido se pode imaginar. Esse é o tema da curta novela História Policial, do judeu húngaro Imre Kertész, prêmio Nobel de 2002, que acaba de ser lançada no País.

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Poderia haver trama mais pertinente para nós, nos nossos dias? Difícil. O torturador pede papel e caneta e na cadeia descreve candidamente como se envolveu com “O Departamento”. Ele, um policial de carreira, habituado a lidar apenas com bandidos, é persuadido a se juntar à máquina da repressão que precisa de reforço porque tem pressa e trabalho demais. O pagamento também é melhor, claro. 

Não sabe interrogar presos políticos? Aprenderá na prática, dizem-lhe, quando reclama da precariedade do treinamento. Há passagens que parecem copiadas de edições recentes de nossos jornais, como esta: “Fazemos com que o delinquente perca o juízo, deixamos seus nervos em frangalhos, paralisamos seu cérebro, reviramos todos os seus bolsos, lapelas até mesmo as entranhas...”. Comparem com “O cara urra de dor”, dito pelo nosso ex-torturador Riscala Corbaje, codinome Nagib. Ou “os dentes a gente quebrava, as mãos cortava daqui para cima...” dito à Comissão Nacional da Verdade pelo nosso ex-torturador Paulo Malhães.

A novela não é do gênero policial. Não há um enigma a ser decifrado, ou um detetive atrás de pistas, ou um elenco de suspeitos a açular a argúcia do leitor. É uma novela política na qual o narrador e protagonista é um policial torturador. 

Mas há, sim, um elemento comum às novelas policiais: um final inesperado. É difícil explicar quais foram as motivações centrais de Kertész – e a justificativa do título: a tese da universalidade e inevitabilidade dos comportamentos policiais, com ou sem ditadura. E de novo caímos na surpreendente atualidade disso tudo, nós que hoje perguntamos em plena democracia: “Onde está Amarildo?”. 

Há um diálogo em que o chefe do “Departamento” explica ao personagem, ainda “novato” na repressão política, que mesmo polícias de países inimigos não são inimigas entre si: “Os policiais nunca são inimigos em lugar nenhum”.

Esse torturador chefe nutre um sonho curioso, uma obsessão: o dia em que todos os policiais do mundo estarão unidos. Na sua utopia – paródia macabra do chamamento “proletários de todo o mundo uni-vos” –, os policiais unidos é que transformarão o mundo.

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Sobre o funcionamento da máquina policial há ainda esta reflexão síntese do narrador e protagonista principal: “Está claro que uma pessoa fichada mais cedo ou mais tarde se transformaria em suspeito”.

O outro personagem importante da novela é um grande empresário cujo filho se sente transtornado com o golpe que implantou a ditadura e de tal forma atormentado por sua impotência que cogita o suicídio ou o engajamento apressado em qualquer grupo que lutar contra o poder – o que é o mesmo que o suicídio. 

Esse é o segundo tema motivador da história: o do conformismo, da alienação, da indiferença das pessoas que continuam seu cotidiano banal, pouco se importando com a ditadura. É a existência inútil ou inexistência ou o “não existencialismo”, como vai filosofar o filho do rico empresário.

Kertész deu a seus personagens nomes hispânicos, Coronel Diaz, o chefe do Departamento, Enrique o jovem transtornado, Salinas, o rico empresário. Rodriguez, o torturador sádico. Diz o autor que transportou a trama para o cenário de uma ditadura genérica latino-americana para driblar a censura húngara da era estalinista. 

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Curiosamente, ou talvez para fazer ironia ou glosar o sistema, ao mesmo tempo ele deu ao personagem principal um sobrenome nada latino: Martens, nome de um pequeno animal das florestas do Hemisfério Norte, e de famílias na Bélgica e arredores.

Ao transpor a história para um país fictício latino-americano, ela se torna também uma alegoria. Para nós, que aqui vivemos, transmite familiaridade – ao ponto de eu suspeitar que Imre andou fazendo alguma pesquisa sobre nossas ditaduras –, mas ao mesmo tempo estranheza. 

É indisfarçável o caráter europeu da narrativa. O próprio autor dá dicas europeias, quando – além do nome Martens – fala na autoestrada para uma Costa Azul. Ou quando denomina Balança de Boger, a máquina inventada pelo Departamento para torturar – um aperfeiçoamento do rústico, mas terrivelmente eficaz, pau de arara de nossos Departamentos. 

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Principalmente, destoa da nossa experiência latino-americana a crise existencial de Enrique, que em nada lembra a nossa juventude dos anos 60 e 70, contestadora antes do golpe e depois dele revolucionária, sem grandes dúvidas existenciais, antes ou depois. Enrique tem nome hispânico, mas é, em tudo, um jovem europeu, um personagem da nouvelle vague.

O enredo é simples, mas a forma de narrar do autor é complexa. Lembra a estrutura de sua novela Liquidação (Companhia das Letras), na qual o narrador e protagonista encontra o manuscrito de uma peça de teatro na qual ele próprio é personagem e a compulsa ao longo da narrativa. 

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Em História Policial, o torturador se apossa do diário de sua vítima, Enrique, consulta-o e nele se apoia, reproduzindo longas passagens, para escrever a sua história. Ou seja, o autor introduz o policial, que introduz o diário de Enrique, que introduz a fala de seu pai, o rico Salinas. Pensei naquelas bonecas russas em que se tira uma de dentro da outra e da outra, e de mais outra. Complica ainda mais porque há descrições de cenários e diálogos sem atribuição clara. Não emergem das lembranças do torturador nem do diário do jovem. 

Tem-se a impressão de que Kertész adota de propósito uma montagem complexa e uma sintaxe despedaçada, embora não ao extremo do seu Kadish para Uma Criança Não Nascida (Imago) que, com sua sucessão de digressões e incompletudes, mais parece uma corrida de obstáculos em forma escrita. É como se ele quisesse transmitir sua visão de um mundo apocalíptico e insolúvel na própria estrutura acidentada da escritura, não apenas no argumento. 

Antonio Martens, o ex-torturador, não se orgulha nem se arrepende do que fez. Exatamente como os nossos ex-torturadores. Mas diferentemente dos nossos, ele está preso. É na cadeia que escreve o seu relato. Sabe que será condenado e castigado pelos seus crimes. Só ele, porque o chefe de tudo, o coronel Diaz, conseguiu fugiu. 

Aqui, ninguém precisou fugir. E nenhum dos torturadores foi preso. História PolicialAutor: Imre Kertész Tradutor: Gabor Aranyi Editora: Tordesilhas (120 págs., R$ 27,50) 

Bernardo Kucinski é autor de K. Relato de Uma Busca e de Você Vai Voltar para Mim e Outros Contos

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