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Análise: Todorov era um intelectual público

A função do 'filósofo das luzes' era pensar o mundo, escrevê-lo e debatê-lo

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Quis o destino que um filósofo das Luzes morresse num momento em que a humanidade engatinha de volta às cavernas. Foi-se Tzvetan Todorov, o pensador búlgaro residente na França desde os anos 1960. Tinha 77 anos.

Todorov, em 2003 Foto: Divulgação

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Conheci-o (quer dizer, seu texto) algumas eras geológicas atrás, pois seu fundamental Introdução à Literatura Fantástica fazia parte do currículo de um dos meus professores mais queridos, Ruy Coelho, remanescente ainda do grupo fundador da revista Clima, vejam só. 

Através da linha-guia de Todorov estudamos toda a tradição fantástica que vinha de Jan Patocki (de Manuscrito Encontrado em Saragoça), Melville (de Benito Cereno) até o século 20. Foi um dos melhores cursos que fiz na vida e Todorov era um ponto de luz, ou melhor um farol, a guiar conceitualmente as geniais divagações de Ruy Coelho.

Depois me “reencontrei” com o Todorov estruturalista, de Estruturalismo e Poética, Simbolismo e Interpretação, e outros ossos duros de roer. Fundamentais, porém. Todorov chegou a escrever um O Que é o Estruturalismo?, em 1977, tamanha sua identificação com esta, digamos assim, escola de pensamento, que reunia nomes heterogêneos como Lévi-Strauss, Foucault, Barthes, Lacan, etc. Acontece que Todorov escreveu também sobre pintura (Ensaio sobre a Pintura Flamenga da Renascença, Rembrandt, Goya, etc.), a conquista da América pelo colonizador europeu (Narrativas Aztecas), política (Benjamin Constant: A Paixão Democrática). Era um intelectual público. Ou seja, sua função era pensar o mundo. Escrevê-lo e debatê-lo. Quando notou o caminho que o planetinha aqui havia tomado com o capitalismo turbinado pelo neoliberalismo, passou a escrever textos como A Nova Desordem Mundial (2003), A Experiência Totalitária (2010) e Os Inimigos Íntimos da Democracia (2012). Sabia que neste estágio do looping capitalista a arte não tem centralidade a não ser em seu valor de mercado. Daí este belo e triste texto A Literatura em Perigo (2007). Sob encomenda, escreveu outro bonito e sintético livro, uma pequena joia: O Espírito das Luzes. Esse búlgaro de alma francesa percebeu que o trabalho civilizatório do Iluminismo, de Diderot, Voltaire e Rousseau, seria sempre inacabado. Estaria sempre em processo porque a força da barbárie e da superstição não pode ser subestimada. Transcrevo abaixo o finalzinho desse ensaio escrito a convite da Biblioteca Nacional da França para uma exposição sobre “Luzes: uma herança para Amanhã” que teve lugar em Paris, em 2006. “Os homens precisam de segurança e de consolo tanto quanto de liberdade de verdade; eles preferem defender os membros de seus grupos a aderir aos valores universais; e o desejo do poder, levando ao uso da violência, não é menos característico da espécie humana que a argumentação racional. A isso se somaram os desvios modernos das aquisições das Luzes, que têm por nome cientificismo, individualismo, dessacralização radical, perda de sentido, relativismo generalizado…  Pode-se recear que esses ataques nunca cessem; por isso é ainda mais necessário manter vivo o espírito das Luzes. A idade da maturidade, que os autores do passado desejavam, não me parece fazer parte do destino da humanidade; ela está condenada a buscar a verdade mais do que a possuí-la. Quando se perguntava a Kant se já se estava na época das Luzes, uma época realmente esclarecida, ele respondia: ‘Não, mas numa época de esclarecimento’. Tal seria a vocação de nossa espécie: recomeçar todos dias esse labor, mesmo sabendo que ele é interminável.” (O Espírito das Luzes, p. 150, Ed. Barcarola).

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