Análise: Rita Lee está na matriz pop da frente feminina inconformista

Tamanho da personalidade da cantora corresponde à coleção de personagens criados ou filtrados por ela em sua tela

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Por Lauro Lisboa Garcia
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Meio Pagu, meio esfinge, um tanto de tatibitati e outro de fruto proibido, misto de prisioneira do amor e tipo inesquecível, destemida como Luz del Fuego, ovelha negra e corista de rock, Rita Lee juntou em seu planeta sonoro quase todas as mulheres do mundo, espelhada na libertária Leila Diniz, desde o tempo de Mutantes. Gata na canção de Joyce, está na matriz pop de Marina Lima, Cássia Eller, Zélia Duncan, Pitty, Karina Buhr, essa frente feminina inconformista e poderosa, que é “mais macho que muito homem”.

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O tamanho da personalidade de Rita, circense em constante baile na tribo brasileira, corresponde à coleção de personagens criados ou filtrados por ela em sua tela (Elis, Ney, Caetano, Gil, Frenéticas, Fernandona, Elvira Pagã), entre o real e a fantasia, na cena escrita de modo a “dançar pra não dançar”. Com olhos de raio X teatral e vocação paródica, Rita anarquizou a sisuda progressão do rock, da qual uma vez foi expulsa. E o futuro a absolveu disso.

De caso sério com aquele tal de “roque enrow” em sabor Tutti Frutti, a fera de pele macia foi muito romântica, mas teimou em encher de bom humor a nave dos malucos com os frutos de outros troncos musicais: a marchinha brejeira a la Miranda, o tum-tum do samba-pop com sotaque de Adoniran, a bossa do amor e o sexo do carnaval, a malícia latino-americana em ritmo de mambo, tango, chá-chá-chá. Em sua mais completa tradução do transe tropicalista, como Gilberto Gil, parceiro de refestanças, se jogou na diversidade de atuação.

A cantora Rita Lee em 1974. Foto: Acervo Estadão

Arrombou a festa da tal MPB, fez “um monte de gente feliz”, mas também tropeçou no ego, e chocou com a crítica na fase de esgotamento criativo na segunda metade da década de 1980, depois de ter virado “unanimidade nacional”. Até que deu uma pausa para retomar o fôlego. Egos cicatrizados entre idas e vindas com Roberto de Carvalho, parceiro-mor de vida e de música, seu departamento de criação se tornou “seriamente louco”.

Ao sangrar a marca da zorra na testa de um Brasil “colônia quintal”, de “elite rastaquera” e “darks ditaduras”, fincou expressões que soam lapidares nesse caos atual de celulares, “muita patrulha, muita bagunça” e “gigolôs de opinião”: é “cada um por si, todo mundo na lona”, “tá cada vez mais down o high society”, “seguir a lei jamais compensa”. Para concluir, “siamo tutti fuditti”.

Em situação de Shangri-lá depois do retiro dos palcos, deixou um testamento em impulsos de menopower e desperta a imaginação alheia por um mito de “essencial da vida”. É como se pincelasse novas camadas sobre imagens desenhadas em canções como Modinha, Normal em Curitiba, Mamãe Natureza, Baila Comigo, Coisas da Vida e Zona Zen, que resultaram em Vidinha. Sua história é um vidão do balacobaco.