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Análise: 'O Orangotango Marxista' e a mecânica de uma sociedade adoecida

'O Orangotango Marxista' não omite ou se esconde dos paradoxos que desde sempre alimentam a nossa animalidade política

Por André de Leones
Atualização:

A história de uma revolução malograda, quiçá irrealizável, narrada em primeira pessoa pelo orangotango que a lideraria: eis o que o leitor encontra em O Orangotango Marxista, novo romance de Marcelo Rubens Paiva. Preso no “campo de concentração didático” (o zoológico), o protagonista é um primata atípico, alfabetizado e leitor voraz, mais próximo dos “macacos nus” (os humanos) que de seus companheiros de cativeiro.

Marcelo Rubens Paiva antropomorfiza o orangotango para melhor animalizar os humanos Foto: Julia Moraes

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Na infância, ele lê Batman, de quem se torna fã: “Existe uma sordidez em Batman que existiu em toda a minha infância”. Mais velho, após perceber “quem era meu inimigo, o que estava errado na minha vida e por que me transformei no prisioneiro de uma existência sem o menor sentido”, corrige o “rumo” e abraça Marx (depois de ter com Darwin), crente de que é possível usar suas ideias para alavancar uma transformação real.

+++ Marcelo Rubens Paiva lança olhar irônico sobre nossa evolução em 'O Orangotango Marxista'

Mas, antes de ansiar pela liberdade, ele flerta com o amor. Vivendo no centro de pesquisas de uma universidade, apaixona-se por Kátia, sua tratadora, “uma tímida, linda, ruiva, amorosa e dedicada pesquisadora universitária”, o que, é claro, desgraça a vida do nosso herói. É a paixão, contudo, que o leva a se interessar pelas atividades extracurriculares, por assim dizer: acompanha as aulas de alfabetização dos filhos dos funcionários, colabora com os experimentos científicos da adorada pesquisadora e, à noite, “livre para investigar”, mergulha na biblioteca da universidade.

Depois de reagir mal à desilusão amorosa (quando se comporta como um Louis C. K. orangotango), é transferido para o zoológico. Em plena adolescência, vivenciando uma terrível dor de cotovelo, vizinho de um gorila chamado Fidel (o qual vive solitário em “uma ilhota só para ele”), desinteressado da companheira de jaula (Kinder Ovo), ele passa a escapar à noite para observar a cidade lá fora e seus habitantes. E, claro, como bom orangotango marxista, após atentar para a própria condição de oprimido, arquiteta seus planos revolucionários.

Partindo de uma premissa com ecos kafkianos (vide o conto Um Relatório para uma Academia) e da óbvia, mas extremamente funcional, inversão de perspectiva, Marcelo Rubens Paiva antropomorfiza o orangotango para melhor animalizar os humanos e expor, pela voz de um primata ilustrado – coisa cada vez mais rara, não é mesmo? –, a mecânica de uma sociedade adoecida. Dada a bagagem cultural do protagonista, o jogo narrativo ironicamente pressupõe um nivelamento pelo alto, e o “animal dócil e escravizado” cede espaço ao “animal político”.

Óbvio que, como nos mostra a história, o cultivo da revolução é de certa forma análogo à criação de corvos, os quais, conforme o ditado, cedo ou tarde nos furam os olhos. Por sorte, O Orangotango Marxista não omite ou se esconde dos paradoxos que desde sempre alimentam a nossa animalidade política, e ainda explicita a noção de que estamos presos ao eterno embate de teses e antíteses, e a síntese, qualquer que seja, não passa de um malogro, de uma quimera em cujo nome ainda correm rios de sangue.ANDRÉ DE LEONES É AUTOR DE 'EUFRATES' (NO PRELO) E 'ABAIXO DO PARAÍSO', ENTRE OUTROS

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