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Análise: É preciso ver Bioy Casares com os olhos de Cortázar

Timidez, no entanto, não permitiu que os dois escritores se tornassem amigos próximos, apesar da admiração mútua

Por Wilson Alves-Bezerra
Atualização:

Em Diário para um Conto (1982), o último texto do último livro de Julio Cortázar (1914-1984), o narrador declara a si mesmo, já nas primeiras linhas do relato, suas dificuldades em começar a escrever: “Às vezes, quando já não dá para fazer outra coisa além de começar um conto como queria começar este, é justamente nestas horas que eu queria ser Adolfo Bioy Casares. Gostaria de ser Bioy porque sempre o admirei como escritor e o estimei como pessoa, apesar de que nossas respectivas timidezes não nos ajudaram a ser amigos, além de outras razões de peso.”

Nas linhas seguintes, o narrador – que deliberadamente se confunde com o escritor Cortázar – elogia de Bioy Casares (1914-1999) sua capacidade de mostrar profundamente seus personagens, e ainda assim manter uma distância entre eles e o narrador. É justamente o contrário do que vemos na obra de Cortázar, cujos narradores se envolvem com os personagens até o limite da metamorfose e da transmigração. A incomum confissão do último conto de Cortázar é reveladora não apenas quanto a Bioy, mas quanto ao próprio Cortázar, nesta espécie de declaração final. 

Bioy Casares e Jorge Luis Borges com Josefina Dorado e Victoria Ocampo em 1935 Foto: JULIO GIUSTOZZA/REPRODUCAO

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Nesse diálogo de tímidos, a resposta de Bioy só se fez conhecer postumamente, em 2001, quando foram publicados seus diários íntimos em Descanso de Caminantes. No dia 12 de fevereiro de 1984, dia da morte de Cortázar, Bioy lamenta nunca ter escrito, ao longo dos dois últimos anos, para agradecer ao colega de ofício “a extraordinária generosidade de se referir a mim, tão elogiosa, tão amistosamente em seu admirável Diário para um Conto. Pensa que as diferenças políticas – ele liberal, Cortázar comunista – pesaram, além da timidez, e arremata: “Se estivéssemos em um mundo no qual a verdade fosse comunicada diretamente, sem necessidade das palavras, que exageram ou diminuem, eu teria dito que sempre o senti próximo de mim e que concordávamos no essencial.” Frase eloquente para quem sempre viveu das palavras.

A dimensão da incomunicabilidade de certa “verdade” – termo caro a Bioy – termina por aproximar ambos os autores, cujos centenários são celebrados neste ano de 2014: Cortázar foi pródigo em mostrar pares incomunicáveis, seus contos Axolotl, Pescoço de Gatinho Preto e Anel de Moebius, em dimensões diversas, mostram relações que naufragam pela impossibilidade de aceder à alteridade. Já Bioy Casares, em seu clássico romance A Invenção de Morel (1940) mostra um narrador siderado com a visão de uma mulher, Faustine, que repete diariamente o ritual de caminhar numa ilha ao lado do namorado, mas que o ignora completamente. A amada, descobre-se ao final, era a imagem projetada continuamente por uma engenhoca inventada por um certo Morel; trata-se da homenagem de Bioy ao cinema. Os personagens de ambos autores, nos casos acima, naufragam diante de espelhismos sedutores.

A imagem kafkiana do homem tímido – que não consegue expressar o amor, a verdade, e que se recolhe a seu silêncio – pode ser reavaliada a partir das centenas de páginas íntimas de Bioy Casares que têm sido publicadas a partir de sua morte. A dimensão privada do escritor ficou cada vez mais exposta a partir de seu projeto de publicar postumamente seus diários. Há ao menos três livros capitais: além do já citado Descanso de Caminantes, que recolhe anotações oníricas, literárias e linguísticas, os temáticos Borges (2006) e Unos Dias en el Brasil (2010), que devem ser importados pelo leitor brasileiro, já que todos estão infelizmente inéditos entre nós.

A publicação desses diários lança luz à excelente produção narrativa de Bioy – em geral eclipsada pela presença de seu contemporâneo Borges (1899-1986), a quem se poderia atribuir o que o próprio Borges falou de Quevedo: “Mais que um homem, uma vasta e complexa literatura”. Por um lado reafirmam sua postura tímida e reverencial em relação a Borges, com quem se encontrava cotidianamente, e a quem dedicou um alentado volume de mais de 1.600 páginas, com transcrição de diálogos e conversas literárias de ambos. Segundo o editor Daniel Martino, o objetivo de Bioy foi “contar como o vi, como ele foi comigo. Corrigir alguns erros que se cometeram sobre ele, defender Borges e, sobretudo, defender a verdade”. Defender Borges é defender a si mesmo, pode-se pensar. Parte importante da obra de Bioy deu-se em colaboração com o amigo: desde um inaugural e já mítico folheto de propaganda de iogurte, passando pela construção do heterônimo Honorio Bustos Domeq, até a organização conjunta, com Silvina Ocampo, da Antologia da Literatura Fantástica (1940).

O curioso é que ao lado da dimensão reclusa e da devoção a Borges, à literatura e à “verdade”, o projeto deixa sugerido o afã de construção de uma figura outra de si mesmo. E aí, surge uma figura ácida, vaidosa, que se compraz em atacar escritores rivais e lembrar-se dos tempos de juventude. O que deve compor-se ainda com a revolta contra a decrepitude física, as dores lombares, de quem na juventude foi esportista e sedutor.

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Interessante contrapor este Bioy privado à seu romance Diário da Guerra do Porco, o qual colocava em cena, já em 1972 – quando o autor recém ingressava na velhice – uma ficção sobre uma revolta que consistia em exterminar velhos; narrada sob os preceitos da literatura fantástica, deixava o leitor na incômoda posição de assombrar-se tanto com a finitude do próprio corpo quanto ao desejo de exterminar a velhice no mundo.

No momento em que se completam os cem anos de Bioy Casares, uma cifra quase obscena para quem sonhava manter-se jovem, conhecer ou revisitar sua obra narrativa é uma oportunidade de leitura para conhecê-lo para além do “amigo de Borges”. É reconhecê-lo na dimensão trazida por Julio Cortázar, a de um narrador contido, que delega ao leitor o assombro e a adjetivação. Ou ainda, a oportunidade para ver de perto suas obsessões e vaidades, registradas em seus diários pessoais, dimensão na qual foi também grande.

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