PUBLICIDADE

Análise: Bob Dylan é o mesmo. O Nobel, não

E cabe um excelente debate sobre isso ser bom ou ruim; havia sinais de que o prêmio precisava mesmo de uma repaginada

Por Sérgio Rodrigues
Atualização:

Que o prêmio Nobel de literatura para Bob Dylan tenha deflagrado uma polêmica quente nas redes sociais não espanta ninguém. Polêmica em redes sociais, de preferência bem polarizada e estridente, é o novo padrão-ouro do sucesso no mundo digital. 

PUBLICIDADE

É provável que estivesse nos planos da Academia Sueca o quebra-pau entre a facção do “lindo reconhecimento a um gênio” e as hostes da “lamentável rendição ao pop”. Não deixa de ser uma atualização do cansado e pouco midiático refrão “quem já ouviu falar desse poeta uzbeque?” que vinha dominando o Nobel ano sim, ano não.

Como ocorre com a maioria das polêmicas polarizadas e estridentes, os dois lados têm argumentos respeitáveis. 

Sim, Robert Allen Zimmerman, que adotou seu nome artístico em homenagem ao poeta galês Dylan Thomas, é um dos grandes nomes da canção do século XX e um letrista prolífico e nada menos que genial. Talvez seja um dos maiores seres humanos vivos em qualquer campo da arte. 

Um cinegrafista filma livros de Bob Dylan expostos na Academia Sueca, em Estocolmo, nesta quinta-feira, 13 Foto: AFP PHOTO / JONATHAN NACKSTRAND

Além disso, como lembrou com erudição curiosamente defensiva a secretária da Academia, Sara Danius, os poetas Homero e Safo “escreveram textos que deviam ser ouvidos, executados, muitas vezes com instrumentos...”. O que é verdade, mas soa forçado. Desde então houve alguma especialização no campo artístico, não? Ou os suecos acreditam que, 2.800 anos depois de Homero, um ciclo se fechou e o Ocidente está retornando à oralidade? Neste caso seria preciso desenvolver o argumento. 

Aí vem o outro lado. Não dá para negar que, ao escolher Bob Dylan como “escritor”, o Nobel alcança uma nota em falsete que trai certo desespero. Um prêmio que troca o balneário decadente e cada vez menos frequentado da literatura – que por isso mesmo nunca precisou tanto dele – pelos estádios lotados da música pop parece talhado mais para agraciar quem o dá do que quem o recebe: “Viram como somos moderninhos, abertos, interdisciplinares, sintonizados com a cultura popular?”.

O fato é que, com ou sem Nobel, Bob Dylan é o mesmo. Já o Nobel com Bob Dylan fica muito diferente. 

Publicidade

Cabe um excelente debate sobre isso ser bom ou ruim. Havia sinais de que o prêmio precisava mesmo de uma repaginada. A ridícula guerra às letras americanas declarada em 2008 pelo então cabeça da Academia, Horace Engdahl, era um sintoma de senilidade: a exclusão prévia de Philip Roth de um prêmio destinado a distinguir mérito literário atentava contra a literatura. 

Os remedinhos necessários parecem estar sendo tomados pelo pessoal de Estocolmo. Como sempre ocorre nesses casos, acertar a dose não é fácil. A disposição de expandir os domínios do prêmio já se fez sentir ano passado, ainda que de forma menos espetacular, com a consagração de uma jornalista juramentada como Svetlana Aleksiévitch. 

O problema é reconhecer a fronteira pouco nítida entre se manter culturalmente relevante para a literatura do século XXI e pegar carona no carrossel de chamarizes de cliques e gratificação imediata do século XXI, que em muitos aspectos é a antítese perfeita da literatura. A sintonia é fina e a corda, bamba. Boa sorte ao Nobel.

* Sérgio Rodrigues é escritor e jornalista, autor de Viva a língua brasileira! e O Drible, romance vencedor do prêmio Portugal Telecom 2014.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.