"Zélia": o "escorregão" de Sabino completa dez anos

Há uma década, a biografia da ex-ministra transformou o escritor mineiro numa das figuras mais malhadas pela crítica. O livro vendeu 240 mil exemplares em dois meses, mas chamuscou o prestígio do autor

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Por Agencia Estado
Atualização:

Hoje faz dez anos que a reputação literária de Fernando Sabino foi confiscada pelo livro Zélia, Uma Paixão (Record, 1991, R$ 20), a afamada e polêmica biografia da ex-ministra de Economia Zélia Cardoso de Mello. Poucas vezes se testemunhou um linchamento moral e literário tão violento de um escritor, que se calou e só recentemente voltou, lacônico, ao assunto. O livro - na época explicado pela própria Zélia como contendo 80% de verdade e 20% de ficção - gira em torno do romance entre a ministra e o hoje senador Bernardo Cabral (então ministro da Justiça), mostra cenas amorosas ao som de boleros e taças de champanhe, fala de encontros escondidos em Brasília, São Paulo e Nova York e dedica um capítulo inteiro à demissão (conspiração, diz ela) de Zélia. Em dois meses, a "biografia romantizada" (definição do autor) vendeu 240 mil exemplares - num ano recessivo e de poucas vendas no mercado editorial -, mas chamuscou o prestígio de um escritor de sólida trajetória. Os biografados também se deram mal. Zélia casou-se e separou-se do humorista Chico Anísio e recentemente foi vista na Internet em anúncio à procura de um namorado, e Collor tornou-se o autor de um dos capítulos mais deplorados da história política nacional. Menos de uma semana depois do lançamento, Zélia, Uma Paixão ardeu numa fogueira crítica como raramente se observou na literatura brasileira. Algumas das linhas mais corrosivas foram de Roberto Ventura, professor de literatura comparada da USP, no Estadão. Ventura escreveu que o escritor mineiro teria sucumbido ao sucesso fácil de um "folhetim sensacionalista" e avaliou o livro como uma aliança entre o "exibicionismo compulsivo de Zélia e o comercialismo barato de Sabino". Houve também quem procurasse explicar o episódio como uma aventura extraliterária na carreira de um autor respeitado como cronista e prosador. Mutismo preservado - Sabino sentiu as punhaladas e se recolheu a um mutismo até hoje preservado. Desde então contam-se nos dedos de uma mão o número de entrevistas à mídia - em uma delas, sintomaticamente, ele confessa ter preferido ser músico a escritor. Equívoco ou oportunismo? Para o crítico literário Fábio Lucas, nem uma coisa nem outra. "O livro sobre a Zélia se insere numa coleção de perfis, de pessoas a quem Sabino admirava. Esse lado esteve presente no momento em que a Zélia subia ao estrelato." Um dos livros de não-ficção mais interessantes do escritor é justamente uma reunião de perfis publicados inicialmente nos jornais e intitulada Gente. Nomes tão díspares como Roberto Carlos, Chico Anysio, Mário de Andrade e Jorge Amado estão alinhavados ali. Mas Zélia, Uma Paixão destoa dos demais perfis - escritos e reescritos por Sabino, reconhecido pela elegância do estilo. O livro foi feito em apenas 40 dias, o que levou muita gente a desconfiar de oportunismo. Apenas neste ano, Sabino rompeu o silêncio sobre sua obra mais polêmica. Um dos capítulos do volume Livro Aberto (Record, 658 págs., R$ 45) reserva ao leitor algumas linhas de esclarecimento. Diz que poucos entre seus algozes leram o livro até o fim e que não se tratou de uma aventura extraliterária, mas de um desafio apaixonante sobre uma "insigne figura da vida nacional". Antes do recente lançamento, o escritor teve toda sua obra reunida e editada pela Nova Aguilar, privilégio editorial reservado apenas a grandes nomes da literatura brasileira como Cabral, Vinicius e Cruz e Souza, entre outros. Uma iniciativa que o recoloca num merecido lugar. Outro movimento com vistas a redimi-lo começou há pouco tempo na Academia Brasileira de Letras. Alguns acadêmicos cogitam o nome de Sabino como futuro imortal para fazer jus à sua reputação manchada há dez anos.

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