Vida em som e imagem

Boa parte da história da música brasileira passou por Hermínio Bello de Carvalho. Agora, ele cede seus registros ao MIS para torná-los acessíveis

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Por Roberta Pennafort
Atualização:

Olhar aflito, Hermínio Bello de Carvalho aponta para as estantes de seu escritório, recheadas com cerca de cinco mil LPs, e solta: "Quando imagino isso tudo vazio me sinto esquartejado". Aos 76 anos (o aniversário é daqui a uma semana), o produtor e poeta carioca, parceiro de Pixinguinha, Cartola, Paulinho da Viola, Chico Buarque e Dona Ivone Lara, autor, com eles, de um punhado de composições gloriosas do nosso cancioneiro, vai doar ao Museu da Imagem e do Som (MIS) quase tudo que juntou durante as cinco décadas em que produziu e participou de muito do que se fez na MPB.

 

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Ele não está triste, ao contrário do que a frase algo trágica faz supor. "Sempre gostei de repartir cultura. Esse acervo tem sido disponibilizado a quem pesquisa por anos, na medida do impossível", brinca Hermínio, que, apesar de ter amealhado, além de discos e partituras, fotografias (3.500), recortes de jornais (mais de 30 livros encadernados, divididos cronologicamente por colaboradores), poesias (440) e correspondências (500), não se vê como pesquisador - é um "informador", retifica.

 

"Guardei tudo ‘bagunçadamente’. Se eu me julgar assim, estou desqualificando o Sérgio Cabral (biógrafo de Elizeth Cardoso, Tom Jobim), a Marília Barbosa (Cartola)", diz, com a "exuberante modéstia" costumeira.

 

"Hermínio fala assim porque é contra picaretagens. Mas no fim das contas, ele é, sim (pesquisador)", atesta Alexandre Pavan, autor de Timoneiro, seu "perfil biográfico" e coordenador-geral do projeto Acervo HBC, no qual trabalha desde 2007, junto com Luiz Boal, coordenador administrativo do projeto, e Luiz Ribeiro, que cuida da recuperação de 870 horas de áudio.

 

Para além dos muitos itens pitorescos, como um bilhete do compositor russo Igor Stravinski, a quem Hermínio, jovem atrevido, procurara no Copacabana Palace, em sua passagem pelo Rio, em 1963, para que falasse de nossa música, a parte mais impressionante desse conjunto é justamente essa coleção de gravações, feitas com um fiel gravador Philips. São registros que só ele tem, tirados de reuniões informais, ensaios caseiros, conversas, entrevistas.

 

Amigo dos melhores, responsável pela produção de inúmeros shows, CDs e programas de rádio e TV, Hermínio conseguiu documentar uma série de primeiras audições, que hoje são puro deleite: Tom Jobim lhe mostrando a beleza de Inútil Paisagem; Cartola apresentando o samba Autonomia para Elizeth Cardoso; Paulinho da Viola fazendo o mesmo com Na Linha do Mar a Clementina de Jesus. "São gravações inéditas. Como é um compositor, as coisas aconteciam na sua própria casa", louva Rosa Maria Araujo, presidente do MIS.

 

 

 

 

Digitalização. Hoje será consolidada a doação em uma reunião entre Hermínio, os pesquisadores do acervo e técnicos do MIS. Uma parte já está digitalizada graças a um patrocínio de R$ 260 mil da Petrobras. O trabalho começou em 2007 e durou 18 meses. No site, tudo aquilo que se espalhava pelos cômodos de seu apartamento está separadinho: poesias, músicas, cartas, quadros, desenhos, crônicas, fotos.

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Há uma nova fase por vir, que ainda não está garantida - falta outro patrocínio. A princípio, os pesquisadores imaginavam que teriam dez mil itens a catalogar. Acabaram descobrindo que o volume era cinco vezes maior.

 

"Comecei a colecionar pela curiosidade, e sempre pela atração pela palavra", justifica Hermínio, desde garoto fissurado por música. Há quase 40 anos é morador do edifício Pixinguinha, em Botafogo. "O Paulinho da Viola morava aqui e na primeira reunião de condomínio mudamos o nome antigo."

 

Alvorada, Sei lá, Mangueira, Timoneiro, Pressentimento e Mas Quem Disse Que Eu Te Esqueço são apenas as mais conhecidas de suas parcerias, as que mais lhe rendem direitos autorais - não que receba muito, adverte Hermínio, rindo ao mostrar dois extratos nos valores de R$ 27 e R$ 5 pela execução de seus clássicos.

 

É assim desde que virou jornalista, ainda adolescente: não se preocupa muito com dinheiro. À saúde tem dado mais atenção na última década, período em que teve dois infartos e dois cânceres.

"Diante dessas estatísticas", o homem com cabelos de anjo teme a morte. "Todo dia abro o jornal pra ver se acho meu obituário", repete uma velha piada.

 

COLEÇÃO DE CAYMMI TAMBÉM É AGUARDADA

O MIS deverá receber também a coleção de Dorival Caymmi (1914-2008), cuja doação está sendo negociada entre a instituição e seus três filhos.

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Digitalizado pelo Instituto Antonio Carlos Jobim e disponibilizado no site, o acervo é dividido em iconografia (familiar e profissional), áudios, vídeos, letras (inclusive com sua caligrafia), documentos pessoais, reportagens de jornal.

 

O museu já tem 23 coleções; entre elas, a de Jacob do Bandolim e da Rádio Nacional. Sua nova sede, num prédio de projeto arquitetônico arrojado, na Praia de Copacabana, deverá ficar pronta em 2013. Até lá, tudo estará nos dois prédios do Centro, e online.

 

Outra parte do acervo de Hermínio ficará com a Escola Portátil de Música, à qual deu o nome, há onze anos, e da qual é entusiasta. "Há uma juventude muito interessada, que discute e executa Villa, Tom e Noel, e que não pode ser discriminada", defende.

 

 

TESTEMUNHA OCULARTom mostra Inútil Paisagem João Bosco ensina Kid Cavaquinho a MarleneSarah Vaughan na casa de HermínioImagens de Cartola e Villa-Lobos, entre outrosDepoimentos de Donga e Pixinguinha Show de Elizeth Cardoso cantando Dora (Caymmi) e Como Dois e Dois (Caetano), que nunca gravou

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