Viagem à cultura oriental

Livros trazem a visão singular de Claude Lévi-Strauss sobre a civilização japonesa

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Por ELIAS THOMÉ SALIBA É HISTORIADOR E PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
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ELIAS THOMÉ SALIBAQuando eu tinha seis anos, meu pai me deu uma linda gravura japonesa. Foi minha primeira experiência exótica com outra cultura. Ainda tenho aquela gravura, que agora está muito velha e em condições precárias - como eu. Durante toda a vida procurei entender o significado daquela gravura. Às vezes penso que consegui. Tão evocadora quanto a madeleine para Proust, esta revelação de Claude Lévi-Strauss, em entrevista de 1978, só viria a confirmar o tardio fascínio do antropólogo pelo Japão. Tardio porque Lévi-Strauss só conheceria o país, já septuagenário, entre 1977 e 1988, quando, em cinco viagens de curta duração, não apenas deu palestras e manteve contatos universitários, como reservou a maior parte do tempo para explorar aquele território. Uma foto da época mostra-o num barco pequeno, com sua mulher Monique e amigos japoneses, navegando no Rio Sumida, em Tóquio. Infenso ao detestável olhar do simples turista, e fiel ao seu estilo, Lévi-Strauss optou por visitar os cantos mais recuados do país, priorizando contatos com pescadores, ceramistas, tecelãs, tintureiras, pintores de quimonos, latoeiros, torneiros, laqueadores, carpinteiros, pescadores, músicos tradicionais e, até mesmo, cozinheiros. Os registros dessa aventura exploratória saem agora, no Brasil, em dois volumes: A Antropologia Diante dos Problemas do Mundo Moderno, que reúne três palestras universitárias, proferidas em Tóquio, em 1986, e A Outra Face da Lua, uma antologia variada de crônicas, notas pitorescas e artigos sobre a cultura japonesa. Como todas as culturas, o Japão é um lugar de encontros e misturas e, sobretudo, uma civilização, por natureza, incomensurável, transformando-se num desafio para um constante aprendizado dos limites nos quais esbarra qualquer antropólogo. Mas, tanto por sua posição geográfica na extremidade oriental do Velho Continente quanto por sua história de intermitente isolamento, a cultura japonesa funcionou com um filtro ou como um alambique, oferecendo uma síntese perfeitamente destilada de elementos que nós encontramos - completamente dispersos - noutros lugares. Quem melhor do que Lévi-Strauss, com seu olhar distanciado e com um leve sotaque estruturalista, para desvendar essas simetrias ocultas e singulares de uma cultura?"Eu não estava no Japão apenas para que o mostrassem a mim e para que eu o olhasse como um turista, mas também para fornecer aos japoneses uma ocasião, jamais plenamente satisfeita, de olharem para si mesmos na imagem que deles eu formava." Para todos os temas, o experiente antropólogo tem sempre algo de inesperado a nos dizer. E ele examina, sempre em forma de diálogo, os tópicos mais variados, da literatura à cerâmica, do teatro nô ao trabalho manual, dos estilos de vida aos costumes típicos, da culinária ao regime de trabalho -, sem deixar de lado, obviamente, a ampla e variada gama dos tradicionais mitos japoneses. Até em relação à língua, Lévi-Strauss arrisca-se, oferecendo algumas observações luminosas sobre a diferença entre o "sim"(oui) dos franceses, impregnado de aquiescência passiva e o "hai" japonês, muito mais ativo e impetuoso em direção ao interlocutor.Operando em chave filosófica completamente distinta, a cultura japonesa recusa tanto o sujeito - que não passa de um arranjo biopsicológico destituído de permanência - quanto o discurso - já que a natureza última do mundo nos escapa: o "penso, logo existo" de Descartes é rigorosamente intraduzível em japonês. Para melhor entender tais rejeições, o leitor pode acompanhar o antropólogo na colheita de alguns exemplos inusitados, entendendo o porquê do artesão japonês serrar ou aplainar a madeira no sentido inverso ao do nosso: de longe para perto, do objeto para o sujeito. Na habilidade de antigas costureiras que enfiavam suas agulhas empurrando o buraco pelo fio em vez de empurrar o fio pelo buraco. Nos ruídos dos insetos, os quais, na música japonesa, correspondem a autênticas categorias sonoras. Ou na vocação daqueles orientais - bem antes de Wittgenstein - em ver na linguagem uma espécie de jogo e transformar tal vocação em componente importante do espírito japonês, que Lévi-Strauss relaciona tanto com o karaokê quanto com os avanços nipônicos na área da microeletrônica."- Mestre, o que acontece ao homem inteligente depois da morte?" "-Não tenho a menor ideia." "- O senhor não é um homem inteligente?" "- Sim. Mas não estou morto." É através de muitos diálogos como esse que Lévi-Strauss apresenta algumas pistas provocadoras para entender o típico humor japonês, cujo sabor lembra um confeito levemente mentolado. Isso ocorre de forma sutil, quando o antropólogo realiza uma detalhada análise da pintura zen e da arte primitiva. Elas exprimem um universo no qual são abolidas as distinções entre a vida e a morte, o belo e o feio, o homem e a natureza -, deixando em suspenso todas as hierarquias expressivas: aí, tanto a meditação transcendental, o trocadilho intraduzível ou a derrisão da anedota se equivalem. Daí também o valor atribuído aos jogos de palavras e ao duplo sentido: eles rompem as ligações empíricas entre os fenômenos e proporcionam acesso a outras realidades, menos óbvias, portanto, mais verdadeiras. Neste e nos muitos outros pequenos ensaios, o antropólogo nos proporciona um olhar distanciado sobre uma civilização extremamente consciente de que a humanidade ocupa esta terra a título transitório. E esta breve passagem não lhe dá nenhum direito de causar estragos irremediáveis a um universo que existia muito antes dela e continuará a existir depois.A OUTRA FACE DA LUAAutor: Claude Lévi-StraussTradução: Rosa Freire D'AguiarEditora: Companhia das Letras(128 págs., R$ 29,50)A ANTROPOLOGIA DIANTE DOS PROBLEMAS DO MUNDO MODERNOAutor: Claude Lévi-StraussTradução: Rosa Freire D'AguiarEditora: Companhia das Letras (96 págs., R$ 29,50)Ele tem sempre algo de inesperado a dizer sobre tópicos diversos - da literatura à cerâmica, do teatro nô aos costumes

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