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Vermelho como o céu no sonho de Nascimento

Por Roger Marzochi
Atualização:

O cineasta Francois Truffaut mostrou uma direção a Milton Nascimento na década de 60, quando o filme "Jules et Jim" estava em cartaz em Belo Horizonte. Arrastado pelo amigo Márcio Borges para o cinema, o músico deixou a sala decidido a compor, traduzindo em música e palavra a amizade que aprendera logo cedo. Essa amizade, que perpassa a vida do músico, será celebrada hoje, no Citibank Hall, no Rio de Janeiro, no terceiro show de lançamento do disco "...E a gente sonhando".E quem está na direção artística é o diretor de teatro, cinema e televisão Luiz Antônio Pilar, que conseguiu "desenhar", com ajuda de toda a equipe, ondas musicais invisíveis em luzes, coreografia, cenografia e figurinos. O resultado é uma poderosa "missa leiga", na qual o limite entre arte e religião chega a se desfazer em vários momentos. "Em primeiro lugar você toma um susto: ''vou dirigir o Milton, o que vou fazer?'' Não tem o que fazer", lembra Pilar, que recebeu o convite do próprio Milton em comum acordo com a produção e o cenógrafo Keller Veiga. "Não sei se para a sua geração, mas para a minha, de 40 e 50 anos, ele marca nossa formação intelectual, musical. É um grande mito. E a sensação que temos dos mitos é que estão prontos."Milton não é um mito. É músico. E Pilar sabe disso. Viu a grande transformação dos meninos e meninas de Três Pontas, que participam do disco, por meio dos arranjos de Bituca e, também, a grande bagunça criativa que reinava no estúdio. "Como adequar essa rapaziada? Eu vim antes do Milton para Três Pontas, duas semanas antes, só para trabalhar com todo o coro, para a gente criar uma unidade. E foi trabalho intenso, porque lancei mão de técnica teatral. Como não sou músico, eles iam me dominar com semicolcheias. E havia rolado certa desorganização antes. A ideia foi criar unidade. E disse a eles: vocês são os anjos da guarda do Bituca, seria uma louvação nossa ao santo padre, ao todo poderoso Bituca."Pode-se explicar o ar de santo e o "mito" Bituca, embora hajam outras coisas inexplicáveis. Mas boa parte vem dessa sua proximidade extrema com o sentimento humano. É isso o que o transforma em um ser de outro planeta. Bituca desenvolveu seu modo único de cantar, interpretar, escrever e compartilhar. Sempre com a ajuda de muitos amigos músicos, parceiros, intérpretes, poetas, maestros, diretores, cineastas, pais, mães e irmãos. Agora, também, com os mais de 20 três-pontanos músicos e técnicos de palco.Bituca conheceu gente muito importante na vida. Importante justamente por saber não ser mais importante que ninguém. E, por isso, igual a todos. Mas por ser artista, transforma-se, até sem perceber, em veículo de transformações não apenas pessoais, mas políticas, independentemente da ligação com partidos. Uma dona de casa é tão importante quanto a presidenta. E Milton é também mineiro, quieto. E não tem culpa de, ao abrir a boca, fazer com que o universo se sinta representado. Mercedes Sosa sabia disso. Herbie Hancock na hora deve ter sacado também.Ninguém compõe e interpreta "Morro Velho" impunemente. E "Travessia"? Música dele e de Fernando Brant. É tão tênue a linha que divide a vida pessoal de quem canta com quem ouve e, ao mesmo tempo, é tão livre quanto a música instrumental. Foi a sua segunda grande vitória, no II Festival da Canção do Rio de Janeiro, em 67, conta a jornalista Maria Dolores, no livro "Travessia - a vida de Milton Nascimento".Gente como Vinicius de Moraes, um dos primeiros a ouvir a música "E a gente sonhando", pouco tempo depois que Bituca deixou a sala daquele filme de Truffaut. Gente como Elis Regina, a "Pimentinha", a grande amiga que lhe deu credibilidade como compositor ao gravar "Canção do Sal" no início de sua carreira. E, também, uma das principais responsáveis por tudo que está acontecendo na vida do artista. Ela sempre defendeu muita gente. Como naquela histórica entrevista à TV Cultura durante a Ditadura, quando lembrou que Adoniran Barbosa, apesar de falar engraçado, era um sujeito muito sério.

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