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Retratos e relatos do cotidiano

Velhinha marrenta

Pensar em velhinhos nos traz uma imagem pronta: eles são simpáticos

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Por Ruth Manus
Atualização:

Os velhinhos costumam usufruir de uma presunção que lhes é bastante favorável: a de serem invariavelmente simpáticos ou, pelo menos, engraçadinhos. Quando nos descrevem um homem ou uma mulher somos livres para comprar ou não simpatia por eles de acordo com a narrativa. Com os velhinhos, não. Já vem uma imagem pronta: velhinhos são simpáticos. Imaginemos então uma velhinha, com seus mais de 80. Uma velhinha responsável por uma biblioteca. Não poderia ser melhor: um ar doce, casaquinho azul claro, passos lentos, óculos pendurados no pescoço por uma correntinha dourada, um sorriso antigo - que só quem já leu muito pode ter - e, por fim, a fala lenta, coroada por um “vá com Deus, até amanhã”. Esqueça. Recomece do zero. A velhinha da biblioteca gostava mesmo era de vermelho. Não era piriguete da terceira idade nem nada, mas era de vermelho que ela se vestia. Nada de tom pastel, nada de neutros. Quando muito, um pretinho básico. O cabelo tinha um belo topete. Não topete de algodão doce lilás, típico de velhinhas, mas topete tipo Silvio Santos em dias inspirados. E a cor, nem pense em grisalho. Ouro. Cabelos cor de ouro. Óculos escuros eram uniforme. Não importava se lá dentro não batesse sol, nem se os meteorologistas anunciassem mau tempo há 15 dias. Ela ia com seus óculos imensos, certa de que era o melhor a ser feito. Cheguei a me perguntar se ela tinha algum problema nos olhos, mas encontrei-a no banheiro um dia sem óculos e não, pelo contrário, um belo par de olhos verde escuro. A cereja do bolo era, adivinhe só, chiclete. A velhinha da biblioteca estava sempre mascando chiclete, frequentemente com a boca aberta, como fazem as adolescentes mais antipáticas dentre as antipáticas adolescentes. Mas a velhinha da biblioteca não era nada antipática. Ela era simplesmente inesperada. Eu ficava intrigada. O que é que ela lia? Estiquei o pescoço. Bukowsky. Outro dia, J. K. Rowling. Depois Hannah Arendt. Outras vezes, só lia suas mensagens do whatsapp. Houve um dia em que leu Zizek. Eu achava que velhinhas liam outras coisas. Na semana passada, enquanto eu esperava meu ônibus para voltar para casa, vi a velhinha marrenta sair do Centro Cultural com sua bolsa caramelo, camisa vermelha, tradicionais óculos escuros e o indefectível chicletão na boca. Eu sorri para ela, ela acenou de volta e - plimplim - abriu seu... Porsche, apenas. Velhinha marrenta do caramba. Um dia eu chego lá.

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