Vargas Llosa faz thriller político sobre Trujillo

Em seu novo livro, A Festa do Bode, escritor peruano debruça-se sobre ditadura na República Dominicana que durou 31 anos

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Por Agencia Estado
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Mario Vargas Llosa ama o cinema. Confessou-o numa entrevista em novembro do ano passado. O cinema retribui com parcimônia. O mexicano Jorge Fons fez um filme apenas razoável de Os Filhotes. O peruano Francisco Lombardi foi muitos passos à frente com Pantaleão e as Visitadoras, premiado no Festival de Gramado deste ano. Se o novo livro de Vargas Llosa, A Festa do Bode, fosse adaptado para o cinema poderia resultar num belo thriller. Não faltaria suspense à preparação e execução do atentado que resultou na morte de Rafael Leonidas Trujillo y Molina. Mas seria um thriller de corte psicanalítico. Urania, a personagem que abre e fecha o livro, carrega um segredo de fundo sexual. Revela-o no desfecho. É o que encerra, simbolicamente, a reflexão de Vargas Llosa sobre os 31 anos em que o Bode (como era chamado Trujillo) reinou na República Dominicana. Reinou, sim, e com poderes absolutos. Foi, aliás, o que motivou Vargas Llosa a escrever o livro. A possibilidade de discutir o poder autoritário. Aparentemente, nada mais fora de contexto na América Latina atual. Foram-se as cruéis ditaduras dos anos 60 e 70. Foram-se? Aparentemente. Na entrevista, Vargas Llosa disse que temia pela democracia no continente. Temia por seu país, o Peru, que não é outra coisa senão uma ditadura disfarçada, em que Antonio Fujimori faz o que quer com um Congresso títere (os últimos acontecimentos, mais uma vez, lhe deram razão). Temia pelo Brasil, que advertia, corre o risco de transformar-se numa Colômbia continental. Violência urbana e corrupção revelam a face mais intolerante do Brasil atual, com seus conflitos de terras (e não só esses). "Não há democracia sem desenvolvimento", advertia o escritor. Como jornalista profissional, que também é, ele adora comprar brigas. Criticou Cuba e o gulag. Polemizou com Gunter Grass, que o chamou de nazista, espicaçou Gabriel García Márquez (por seu apoio irrestrito a Fidel) e não poupou nem o grande senhor das letras continentais, Jorge Luís Borges, quando "El Brujo" aceitou uma condecoração da ditadura chilena. Nesse quadro, faz sentido exumar uma ditadura como a de Trujillo. É o que Vargas Llosa faz com raro esplendor. O novo livro é um dos maiores do autor - à altura de um Conversa na Catedral, que também escreveu para purgar a experiência de outra ditadura - a do general Manuel Odria, no Peru. Trujillo, o Bode, enquadra-se, à perfeição, no perfil do ditador latino-americano típico. Durante três décadas foi o pai-patrão da República Dominicana. Autoritário, governava o país como se fosse sua fazenda particular. Instituiu leis absurdas, como uma que proibia as pessoas de andarem descalças na capital e outra que ameaçava confiscar os casacos dos homens que os levassem pendurados no braço. Mandava matar seus opositores onde estivessem, mesmo que fosse em plena luz do dia, nos Estados Unidos, que inicialmente o apoiaram, mas depois retiraram seu apoio. Sua família chegava a deter 70% das terras cultivadas do país. Controlava tanto a República Dominicana que, para ser forte, nem precisava ocupar a presidência - chegou a ceder o posto, provisoriamente, ao irmão. No livro, ele possui as mulheres e desvirgina as filhas de seus ministros e colaboradores. Um falocrata. Essa orgia de sexo metaforiza o estupro a que Trujillo submeteu seu país, assim como sua velha mãe pode ser a representação do arcaísmo que consome a sociedade dominicana. Domínio técnico - Não é de hoje que a literatura de Vargas Llosa transita entre o erótico e o político. Ele escreve admiravelmente. Possui um domínio da escrita e das técnicas do romance que lhe permitem misturar estilos e articular blocos narrativos com raro domínio do timing. Vale lembrar que nas suas cartas a um jovem escritor, título inspirado no poema de Rilke, o autor peruano refletiu sobre o ofício do escritor, analisando a vocação literária enquanto desfilava conselhos para um ficcionista iniciante. O homem que dá conselhos conhece como poucos seu ofício. É um prodigioso narrador. A narrativa desenvolve-se em dois ou mais tempos - quando Urania volta ao país, depois de viver muito tempo nos Estados Unidos. Encontra o velho pai meio-morto, é o presente. Simultaneamente, a narrativa constrói-se e evolui no passado, focalizando, de dentro, a ditadura trujillista e as articulações dos militares para derrubá-lo, os dramas daqueles a quem brutalizou. Foi necessária uma longa, exaustiva pesquisa para escrever o livro. Vargas Llosa pesquisou, em diversas fontes, milhares de documentos. Não é a primeira vez que o faz em sua carreira, bastando citar o exemplo de A Guerra do Fim do Mundo, que dedicou à Guerra de Canudos e à figura de Antônio Conselheiro, no Brasil, reinventando o genial Euclides da Cunha de Os Sertões. Há uma narrativa policial embutida em A Festa do Bode, mas o livro não é só isso. Não é um policial, por exemplo, embora utilize certos elementos do gênero. Vargas Llosa, aliás, tem familiaridade com o romance policial. Quem Matou Palomino Molero? é um policial típico, mas um policial latino-americano, com o espectro de miséria e tortura que expõe a face mais selvagem desse continente. Por mais documentada que seja a ficção de Vargas Llosa, A Festa do Bode inscreve-se nessa categoria. Mistura História e estória, desmistifica os grandes personagens, estabelece a teia que, de Trujillo a Joaquín Balaguer, mistura tudo, a documentação e a fantasia. Vargas Llosa já disse que só por meio da ficção é possível atingir a verdade política. Reconhece na literatura uma forma de mentira criada como forma de revelação. Defende que a verdade só pode ser revelada pela mentira da ficção. Por melhor que seja seu romance (é maravilhoso), não ficou imune às críticas. Sobreviventes do trujillismo criticaram o autor, apegando-se a detalhes para tentar provar que as coisas não foram bem assim. É uma discussão que se repete sempre que alguém se debruça sobre algum episódio histórico sujeito à controvérsia. O importante é que A Festa do Bode, com seu comentário crítico sobre a era Trujillo e a força ficcional de sua narrativa, assinada por um dos grandes da literatura contemporânea, é suficientemente amplo para abarcar outro comentário - sobre a América Latina atual. É a prerrogativa do grande autor.

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