PUBLICIDADE

EXCLUSIVO PARA ASSINANTES

Valete

Eu acho que era o último brasileiro que ainda tinha 'valet de chambre'. Agora acabou. Não tenho mais dinheiro para nada. Minhas empresas faliram todas

Por Luis Fernando Verissimo
Atualização:

“Vou ter que despedi-lo, Simão. “Sim, dr. Pinto.” “Não posso mais pagar um ‘valet de chambre’. Ninguém mais pode, hoje em dia. Eu acho que era o último brasileiro que ainda tinha ‘valet de chambre’. Agora acabou. Não tenho mais dinheiro para nada. Minhas empresas faliram todas. Não tenho mais crédito em lugar algum e já vendi tudo que tinha. Não tenho mais nem o dinheiro da cômoda, que estava guardando para uma emergência. A emergência chegou e o dinheiro da cômoda sumiu.” “Eu sei, dr. Pinto.” “Como você sabe, Simão?” “Fui eu que peguei o dinheiro da cômoda, dr. Pinto.” “Você?!” “Tenho roubado do senhor desde que vim trabalhar aqui.” “Mas o que você faz com todo esse dinheiro, Simão?” “Movimento no mercado de capitais.” “Você deve estar rico, Simão. O mercado de capitais nunca deu tanto dinheiro.” “Não posso me queixar, dr. Pinto.” “E por que continua trabalhando como ‘valet de chambre’?”  “Porque pessoas como o senhor precisam de ‘valets de chambre’ e eu preciso de pessoas que precisam de ‘valets de chambre’. É o que eu faço, dr. Pinto. Eu não existiria se não tivesse alguém como o senhor para vestir, perfumar, escovar, aconselhar e roubar. É a minha vocação.” “Bom, você não terá mais o que roubar de mim. Estou quebrado. Arruinado. Liquidado.” “Sim, dr. Pinto.” “Estou até pensando em me suicidar.” “Sim, dr. Pinto.” “Por falar nisso. O que se deve usar num suicídio?” “Depende de como o senhor pretende se matar, dr. Pinto. Se prefere se atirar pela janela, sugiro algo elegante mas discreto, que não choque demais na calçada, onde a sua chegada já será atração bastante. Uma echarpe de seda branca esvoaçante daria um bom efeito na queda.” “Por que você não me empresta dinheiro, Simão? Pode ser o que você roubou da cômoda. Eu recomeçaria. Sou um empreendedor. Só preciso de dinheiro para empreender. Em pouco tempo lhe pagaria tudo que você tirou de mim, mais os juros.” “É uma boa ideia. O senhor continuaria vivo e eu continuaria ‘valet de chambre’. O que o senhor me daria como garantia para o empréstimo?” “Garantia, Simão?! Mas eu não tenho mais nada!” “Neste caso, dr. Pinto, sinto muito...”  “Mas e todo o tempo que estivemos juntos, Simão? Não vale nada?” “O senhor mesmo me ensinou que não se deve misturar negócios com sentimentalismo, dr. Pinto.” “Pensei que você não estivesse prestando atenção... Bom, só me resta o suicídio. O que você sugere, Simão?”  “Qualquer coisa menos cortar os pulsos e botar a cabeça dentro do forno do fogão. Nada combina com pulsos cortados, e não há maneira elegante de morrer com a cabeça dentro de um fogão. Sugiro pílulas para dormir. Assim poderemos vestir o nosso robe de seda e o senhor será encontrado na cama numa posição contemplativa de extremo bom gosto, como se estivesse meditando sobre as cruezas do capital.” 

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.