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Coluna do escritor e arquiteto Milton Hatoum sobre literatura e cidades

Uma obra-prima do século 20

Publicado em 1936, Absalão, Absalão! é o nono romance de William Faulkner e talvez mais complexo que O Som e a Fúria, Luz em Agosto e Enquanto Agonizo. Os livros de ficção que ele escreveria depois de 1936 são de ótima qualidade, como Palmeiras Selvagens e Uma Fábula. A rigor, nenhum é desprezível, e isso serve também para os relatos breves Uma Rosa para Emily e Setembro Seco, dois dos muitos contos notáveis que publicou.

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Por Milton Hatoum
Atualização:

Leitor de T. S. Eliot, de Wallace Stevens, de Yeats, Keats, e tradutor de alguns poemas de Verlaine, Faulkner começou sua carreira literária como poeta, publicou dois livrinhos de poesia e declarou que era um poeta fracassado, por isso abandonou a poesia para escrever romances. Mas a poesia e uma certa sensibilidade herdada do romantismo são traços fortes de sua linguagem, à qual não falta um pendor a imagens extravagantes e frases longas, entremeadas por incisos e digressões. Tudo isso é parte constitutiva do estilo de Faulkner, que explora a oralidade das personagens e os lapsos, sinuosidades e hesitações da memória numa obra que sonda e problematiza o passado conturbado do sul dos Estados Unidos: “O Sul profundo, morto deste 1865 e habitado por fantasmas prolixos, ultrajados, desnorteados...”.

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Esse passado fantasmagórico ressurge em Absalão, Absalão!, uma vasta e complexa tragédia familiar, que começa na década de 1820, passa pela Guerra de Secessão e repercute na primeira década do século 20. Na verdade, a derrota dos Confederados na Guerra Civil repercute até hoje no Sul dos Estados Unidos, onde os violentos atos racistas, a pobreza e o desemprego humilham uma parte da população do país mais rico do mundo.

A matriz dessa tragédia familiar é o patriarca Sutpen, uma espécie de “demônio”, como diz sua cunhada e depois quase noiva Rosa Coldfield. Embora narrado em terceira pessoa, há extensos monólogos de personagens, num vaivém de vozes que tentam entender o que, no fundo, é incompreensível: a alma humana.

Leitores não familiarizados com a obra de Faulkner talvez estranhem os saltos temporais da narrativa e a fala sem sequência lógica das personagens, num calculado e muito bem tramado jogo do tempo, ou com o tempo. As personagens principais contam fragmentos de sua própria vida e da vida dos outros, e pela voz deles ou por uma voz em terceira pessoa, sabemos a trajetória do jovem Sutpen, desde que a família paupérrima migrou das montanhas de Vermont para o Sul, onde ele se desgarrou dos pais e irmãos e foi humilhado por capatazes negros de uma fazenda. Depois disso, o jovem Sutpen viaja ao Haiti, e nessa aventura com lances romanescos, ele se casa com a filha de um fazendeiro francês e tem um filho (Charles Bon); depois abandona a mulher, o filho e o Haiti e volta para o Mississippi com vários escravos e um arquiteto francês. Daí em diante, rouba terras indígenas, torna-se fazendeiro e constrói uma mansão no condado de Yoknapatapha, perto de Jefferson. Para angariar respeitabilidade, casa-se com Elen Coldfield – uma das filhas de um pequeno comerciante – com quem tem um filho (Henry) e uma filha (Judith). Quando os filhos crescem, o rosto do demônio Sutpen se desdobra em múltiplas faces: incesto, racismo, honra, ambição, violência, machismo, fracasso, vingança... Uma das faces mais terríveis é o grande demônio da loucura, recorrente na obra de Faulkner. Mas há ainda o demônio do acaso: os encontros inesperados, mais casuais que causais, embora isso nem sempre fique claro, pois várias situações decisivas no desenho da trama são ambíguas. Como diz o narrador: “É simplesmente incrível. Simplesmente não se explica”.

De fato, é difícil explicar o encontro e depois a amizade de Henry com seu irmão Charles Bom, um jovem mestiço que se muda com sua mãe para New Orleans; depois, numa universidade estadual, Charles Bon e Henry tornam-se amigos.

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Também é difícil explicar o noivado e a relação incestuosa de Charles Bon com sua irmã Judith. Encontros e viagens que são puro acaso, ou “maquinações ilógicas de uma fatalidade que escolhera aquela família entre todas as outras da região ou desta terra...”. (pág. 93)

O crítico Cleanth Brooks assinala que a obra de Faulkner tem um forte sentido da história, em várias direções: local, familiar, regional, nacional. Não apenas a história livresca, mas também (e sobretudo), a história imaginada a partir de uma experiência vivida e de narrativas orais que os mais velhos contam aos jovens. O resultado é uma narrativa envolvente, movida por uma imaginação poderosa e narrada com uma linguagem extremamente elaborada.

Para a sorte dos leitores brasileiros, a tradução de Celso Mauro Paciornik e Julia Romeu é excelente, pois os tradutores captaram o tom e o ritmo das frases longas e sinuosas, tão faulknerianas. Por fim, Absalão, Absalão! (CosacNaify, 2015) é uma edição belíssima, à semelhança de outros romances de Faulkner publicados por essa mesma editora.

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