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Um ritmo próximo do falar

Inovação da linguagem e achados temáticos mantêm a atualidade do escritor

Por ANTONIO ARNONI PRADO É PROFESSOR DE LITERATURA NA UNICAMP , AUTOR , ENTRE OUTROS , DE TRINCHEIRA , PALCO e LETRAS (COSAC NAIFY)
Atualização:

ANTONIO ARNONI PRADONum momento em que a obra e a personalidade de João Antônio pareciam de algum modo apagar-se no horizonte, esta cuidada edição de seus Contos Reunidos não deixa de fazer justiça ao que representou o alento inovador de sua obra no recente panorama da prosa brasileira. Afinal, quase 50 anos após seu aparecimento, ainda que a nota inventiva dos tempos de estreia emergisse de uma São Paulo romântica e fortemente estilizada, os silêncios do Vale do Anhangabaú, os espaços vazios da Praça Julio Mesquita, do Paissandu e do Correio, tão caros à figuração noturna de seus heróis, não passam hoje de moldura quase inverossímil de um mundo perdido que mal se articula com a realidade de seus antigos malandros, dispersos entre o Moinho Velho e Presidente Altino, Vila Anastácio e o Piqueri, sem esquecer Osasco, Perus e Cruz das Almas.É verdade que a inovação da linguagem e os achados temáticos não deixam de sugerir a um leitor atual de Malagueta, Perus e Bacanaço, por exemplo, o que foi a impressão de novidade que sustentou o encanto do livro, quando nos revelou, em 1963, o colorido de um submundo cuja verdade poucos souberam, como João Antônio, transformar em palavras.Daí talvez o fulgor da chama que jamais se extingue. Como notou Antonio Candido, o dado forte nesse contexto foi a habilidade de João Antônio para inventar linguagens "a partir do que se fala no dia a dia", sem recorrer à estratégia convencional do discurso direto encoberto. Ou seja, longe de escrever literalmente como se fala, o narrador João Antônio como que acelerava a oitiva, fazendo a transfiguração estética do que ouvia e registrava, do que anotava e transcrevia, inventando pelo inesperado dos ritmos, pelo artifício de registros jamais concebidos na figuração literária daquele universo degradado sobre o qual se debruçava atraído pelo "jogo duro da vida".É na retomada dessa configuração que se concentra a força de Contos Reunidos. Distribuído em nove seções, tem apresentação de Rodrigo Lacerda, que acrescenta ao volume, à fortuna crítica e, em particular, ao retrato pessoal de João Antônio, informações preciosas. Isto sem contar a inclusão de um capítulo especial, Dois Dispersos e Um Inédito, contendo os relatos Bolo na Garganta e A Um Palmo Acima dos Joelhos, entremeados, pela ordem, aos volumes de Malagueta, Perus e Bacanaço, Leão de Chácara, Dedo-Duro, Abraçado ao Meu Rancor, Um Herói Sem Paradeiro, além do capítulo João Antônio por Ele Mesmo, a que se seguem alguns dos textos mais representativos da Fortuna Crítica e a relação das Obras do Autor. Os dois dispersos (Um Preso e Bolo na Garganta) têm em comum uma convergência estilística que nos leva ao João Antônio da fase anterior à da produção inovadora, que se afirma a partir dos contos de Malagueta, Perus e Bacanaço, seu primeiro livro. São dois textos da década de 50, o primeiro de fevereiro de 1954 e o segundo (só publicado em 1965) de dezembro de 1956, conforme registra o datiloscrito depositado no arquivos do autor na Unesp de Assis, como indica o apresentador do volume.São relatos de um autor ainda envisgado em muitos dos compassos sintáticos do Graciliano Ramos de Caetés (uma de suas confessadas influências), com um ou outro corte para a síntese livre em direção à oralidade mais tosca e ao discurso enviesado do remoque. No primeiro, um preso medita sobre a monotonia asfixiante da cadeia através dos reflexos momentâneos que, por entre as grades da janela, o levam a "adivinhar" a palpitação da vida lá fora: "Que tristeza! Paulo dorme. O vigia dormita. O corredor é um deserto. E esta chuva, esse vento (...) E passarei aqui mais de dez anos a comer boia magra, fria, em promiscuidade (...) enjaulado, feito bicho, me acabo neste buraco!".No segundo, mais solto, o autor debulha a insipidez dos flagrantes do universo infantil, centrado na impaciência de um menino dividido entre os deveres da casa, a convivência com a família e os sonhos como os de qualquer criança. Já no texto inédito, um relato autobiográfico narrado a partir de um "diálogo" entre o narrador e a cadela Mariuska, remergulhamos em alguns temas bastante explorados no conjunto da obra de João Antônio, tais como as origens humildes da família, a vida escolar e os primeiros amores; a população marginalizada dos morros, os costumes do bairro, a convivência com boêmios, malandros e cantadores (tipos como seu Pedro Macagi, Totoniel Olho Grande e Golão Pururuca); isto sem mencionar as "cabritadas", onde se "podia escorregar, destrambelhar para malsucedida, armando brigas, ingresias, desfeitas, mexidas, confusões", fuás onde podia "dar bode num forrobodó de cuia" -(...) tudo para culminar na lembrança da "menina ungaresa", Aldônia, por cujo amor o narrador menino ficou marcado para o resto da vida, no mais puro dos sentimentos que arredondam o texto. Acrescente-se que, para o leitor de Contos Reunidos, um dos fatores preponderantes é a apresentação de Rodrigo Lacerda, cheia de subsídios valiosos tanto no plano da interpretação literária, como no da contextualização biográfica e intelectual do escritor, ao elucidar as diferentes faces de sua trajetória, muitas vezes truncada, entre a literatura, o jornalismo e a publicidade.Pesquisador dos mais atentos ao significado da prosa de João Antônio, Rodrigo garante ao leitor a amarração indispensável à fruição do conjunto, que ele articula não só ao documentar fatos e episódios pessoais na afirmação do escritor, como também ao se deter nas diferentes etapas de seu projeto literário, que ele investiga na bibliografia da crítica e dos periódicos, na ressonância de suas influências de época e da formação autodidata, passando pela correspondência e pelos registros de leitura, pelo depoimento dos amigos e conhecidos, pela avaliação do papel do jornalismo moderno na sua escrita, sem esquecer o cuidado para decifrar, de um lado, as transformações do escritor que surgia e a radiografia dos textos e das sucessivas edições; de outro, o rico filão das confissões e depoimentos pessoais em que João Antônio reflete e explica seu método de trabalho.São esses elementos que dão ao leitor a vantagem de conhecer os "segredos" do autor em face da obra e da época, como no caso de Leão de Chácara, para cuja redação ele confessa ter conversado muito, sobretudo com um amigo garçom, escolado na convivência com os personagens da noite: "Foi conversando com ele, observando outros leões de chácara (...) conversando muito com eles" que escreveu o livro. O mesmo vale para a contextualização da decadência, em que a redemocratização e as transformações econômicas soterravam aquele Brasil acanhado de seus antigos malandros, minando em João Antônio a capacidade de reagir e de escapar ao rótulo de "escritor dos marginais", mas sem conseguir desvencilhar-se dos excessos estilísticos que já começavam a sufocar seus textos com uma retórica em via de esgotamento. É certo que nada disso se sobrepõe ao rico universo das virtudes elaboradas pela prosa de João Antônio, agora reeditada. Virtudes, aliás, que lhe valeram o reconhecimento de três prêmios literários e a inclusão de seu nome numa linhagem de narradores urbanos que vinham de Alcântara Machado, de Oswald e do próprio Mário de Andrade. O ritmo ajustado à fala, a frase boleando os tipos, a expressão definindo um jeito único de ser frente à existência possível. O estilo de João Antônio confunde-se com a efígie lírica dos excluídos e sempre se imporá como força positiva na figuração da moral sem entraves que empurra os miseráveis para o centro do jogo, convertendo o vício e a catimba em um modo de afirmação da própria dignidade."Vai pras cabeças! Belisca esse homem, Meninão!" - eis o grito do malandro Vitorino para o Meninão do Caixote, que não se fazia de rogado: beliscava mesmo, "mordia, furtava, tomava, entortava, quebrava" o adversário, confirmando no tempo - quem sabe na própria vida - as velhas estripulias das parceiradas e "marmelos" com que o menino Perus, o velho Malagueta e o descarado Bacanaço depenavam os seus adversários na velha São Paulo dos anos 50.

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