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'Um Método Perigoso' relata relação difícil entre Freud e Jung

Filme mostra, em meio à discussão teórica do nascimento da psicanálise, que furor do sexo fervia

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Por Redação
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Sabina Spielrein é apenas uma nota de rodapé em Freud - Uma Vida para o Nosso Tempo, de Peter Gay (Companhia das Letras), considerada a biografia definitiva do pai da psicanálise. Mas, na pele de Keira Knightley, é figura central de Um Método Perigoso, filme em que o cineasta canadense David Cronenberg relata um dos pontos nevrálgicos da aventura psicanalítica, a rivalidade entre Sigmund Freud e seu seguidor, Carl Gustav Jung, nessa que foi uma das notáveis sagas intelectuais de todo o século 20.

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Saga intelectual? Sim, sem dúvida. O que Cronenberg revela, no entanto, é que, em meio a discussões teóricas, disputas clínicas e ideológicas em torno da noção de inconsciente, fervia o furor do sexo. O que não chega a ser surpresa, dado que o próprio Doutor Freud o coloca no centro da psique humana, como motor oculto e às vezes visível de suas mais nobres motivações.

Sabina era russa e fora estudar medicina em Zurique. Num estado de sofrimento mental desesperador, busca tratamento com Jung. Apaixona-se pelo analista. Jung e Sabina tornam-se amantes. Naquele tempo, Freud havia designado o suíço Carl Jung seu sucessor e procura interferir nesse relacionamento entre médico e paciente, indesejável pela política da psicanálise, uma disciplina nova que vivia sob o cerco da medicina psiquiátrica tradicional.

Esse é período abordado por Cronenberg. Talvez não seja inútil acrescentar, a título de informação extracinematográfica, que, desvencilhada por fim dos seus sintomas e da relação com Jung, Sabina se tornou ela própria psicanalista. E das mais brilhantes, segundo se tem notícia. Viveu algum tempo em Viena, onde participou do círculo de discussões de Freud. Em 1937 voltou para a União Soviética e se dedicou à clínica psicanalítica. Em 1942 foi fuzilada, junto com suas duas filhas, por soldados alemães.

De qualquer forma, essa figura de mulher, desenhada de forma um tanto histriônica por Keira Knightley, é o protótipo da tragédia sexual. Contar esse período da psicanálise através de sua personagem foi uma decisão sábia. Em vez de nos debruçarmos sobre controvérsias teóricas tediosas para leigos, próprias do nascimento de uma disciplina polêmica, temos ao vivo os conflitos inscritos na própria carne da personagem. Ou, seria melhor dizer, na carne dos personagens, já que Jung cede prazerosamente, mas não sem culpa, às tentações do métier. Era casado, e com uma mulher muito rica, que lhe proporciona vida confortável na aprazível Suíça. Mais velho, Freud cumpre o papel de terceiro indesejado nessa relação a dois. Aquele que interfere de forma paternal, mas não deixa de vislumbrar nem os encantos da moça nem a sedução do modo de vida de Jung, muito mais folgado e colorido que o seu, passado no cotidiano da clínica em Viena. O passeio dos dois no barco de Jung, num belo lago suíço, é mostra dessa assimetria social e psicológica.

Cronenberg acerta, também, ao evitar seu gosto pelo grotesco e dar às cenas tratamento visual límpido, vagamente hiper-realista, como numa tela de Vermeer. Quando apresentou seu filme no Festival de Veneza do ano passado, justificou a opção dizendo que lhe parecia a melhor para retratar história tão obscura. Mostrou também a preocupação em ser justo com os personagens. Disse que, quando alguém faz um filme biográfico, no fundo, as suas próprias inquietações é que são colocadas na tela, através de outros personagens. "É uma espécie de ressurreição dessas pessoas já mortas, e algo sempre imperfeito", disse. Esses "simulacros" são suficientemente verdadeiros? É uma inquietação do diretor.

De qualquer forma, Viggo Mortensen e Michael Fassbender propõem um Freud e um Jung bastante críveis. Não precisam ser parecidos fisicamente com os personagens reais (não o são). Basta que compreendam de maneira profunda o que atraía e o que opunha os dois grandes homens para que transmitam à história essa impressão de verdade a que chamamos verossimilhança. Isto é, a construção da verdade interna a partir da narrativa. Entre os dois, a figura em aparência frágil, mas de fato poderosa da sexualidade, encarnada em Sabina. Fator que primeiro aproximou os dois homens e terminou por separá-los.

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 HITCHCOCK E O BIÓGRAFO DE FREUD

Autores como Alfred Hitchcock e Fritz Lang foram pioneiros na abordagem da psicanálise no cinema, nos anos 1940. O mestre do suspense chegou a contratar Salvador Dalí para criar as cenas de sonho de Quando Fala o Coração e ainda criou aquele efeito mágico quando todas as portas se abrem, na cena de amor. Mais tarde, no começo dos 60, Hitchcock fez dois thrillers psicanalíticos que integram sua trilogia sobre o complexo de Édipo, Psicose e Marnie, as Confissões de Uma Ladra (o terceiro filme, o do meio, é Os Pássaros).

Justamente em 1960, John Huston encarou o desafio de biografar o criador da psicanálise em Freud, Além da Alma. Huston encomendou o roteiro a quem parecia o menos indicado dos autores para isso, o existencialista Jean-Paul Sartre. O escritor francês, mordido pelo desafio, lhe entregou um roteiro que Huston considerou infilmável. Quando Huston lhe pediu que o encurtasse, Sartre enviou uma versão ainda mais longa - que o próprio diretor reescreveu/reduziu com a participação de um de seus fiéis colaboradores, Anthony Veiller.

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Freud, Além da Alma aborda o universo dos sonhos e trata dos experimentos de investigação sobre a histeria que se intensificaram no final do século 19. A pesquisa sobre esse assunto, por sinal, levou Keira Knightley a realizar uma interpretação brilhante para Cronenberg.

De volta a Huston, as cenas de sonho, em admirável preto e branco, são prodigiosas e o filme privilegia a tortura interior de Montgomery Clift, no papel título, aprofundando sua relação com os pacientes interpretados por David McCallum e Susannah York. Seu efeito foi liberador sobre a mente do próprio artista e, em 1967, ele fez sua obra-prima, Os Pecados de Todos Nós, com Marlon Brando e Elizabeth Taylor. / L.C.M.

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