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Um jogo de reflexos

Tatiana Belinky relembra próprio fascínio infantil pelos espelhos em seu novo trabalho

Por BIA REIS
Atualização:

Quando criança, a escritora Tatiana Belinky tinha uma relação dúbia com o espelho. Gostava de brincar com o objeto, mas também brigava com ele. Tinha uma autoestima baixa, como define, e, por isso, muitas vezes via o espelho como inimigo. Ao aprender a fazer as primeiras letras, a menina, canhota por natureza, se tornou ambidestra por vontade do pai. "Experimente a outra, você tem outra mão", ele disse. E Tatiana desenvolveu a habilidade de escrever com as duas. "O espelho, mentiroso, invertia a imagem, e a mão mais fraca virava a forte, a que dominava", brinca a escritora.A vida de uma das mais importantes autoras de histórias infantis do Brasil é tão encantadora quanto a imagem refletida no espelho. Nascida em São Petersburgo, na Rússia, Tatiana veio para o País quando tinha 10 anos. A família fugia da guerra civil que assolava sua terra natal e que, em 1917, resultou no nascimento da União Soviética.Poliglota, a menina cresceu devorando livros. Estudou filosofia, trabalhou com traduções e adaptações, entre elas a do Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, criou peças infantis, escreveu crônicas, contos e histórias para jornais.Seu primeiro livro de poesias, Limeriques, foi publicado em 1987. Ela conta que descobriu a fórmula do limerique - poema composto por duas linhas rimadas grandes, duas linhas rimadas pequenas e uma quinta que rima com as anteriores e pode contradizer tudo o que foi dito - em uma edição da revista Playboy publicada nos Estados Unidos."A fórmula, claro, não era infantil. Tinha malícia, era para adultos. Mas percebi que aquela estrutura se prestaria para brincar com as crianças", lembra. A fórmula, que ganhou vida e prestígio no Brasil pelas mãos de Tatiana, é empregada mais uma vez no livro O Espelho, recém-lançado pela Editora Saraiva, selo Caramelo.Na obra, a trança-rimas, como era chamada carinhosamente pelo pai, faz a coisa que mais gosta: brincar com as palavras, sempre com humor. A escritora trata de vários aspectos daquele objeto que tanto a intrigava. Fala do espelho que engana, mente, ilude, troca a posição das imagens. Mas mostra também o outro lado: ele reflete a realidade, mexe com a vaidade.Tatiana brinca com os corpos, que ganham diferentes formas e tamanhos em um labirinto de espelhos e com a confusão que o objeto causa ao inverter o lado direito com o esquerdo, e vice-versa. Revela o espelho protetor, como o que está no retrovisor dos carros, e o companheiro, que reflete a nossa imagem e nunca nos deixa estar nós.Fadas e mitos. Mas Tatiana vai além. Sai em busca dos espelhos nos contos de fada. Lembra daquele descrito na história da Branca de Neve, que foi sincero com a madrasta e obrigou a princesa a fugir, e o de Alice no País das Maravilhas.Resgata também os espelhos que, na verdade, não são espelho. Apresenta os mitos de Narciso, que se apaixonou pela própria imagem ao vê-la refletida em um lago, e de Medusa e Perseu, que usou um escudo para rebater a imagem e não ser transformado em pedra.Tatiana não tem medo de adotar referências mais sofisticadas em livros infantis. "Criança pesca, saca rápido, muito depressa. Quem demora são os adultos. Eu respeito a inteligência dos meus leitores. Além disso, o que é criança? Ela pode ter 2, 5, 8 anos. Cada uma vai entender de um jeito e mais tarde, quando voltar a ler o livro de novo, a compreensão também será outra."Em O Espelho, a autora utiliza os ingredientes, classificados por ela de "absolutamente indispensáveis", que recomenda a quem quer escrever para criança: ética, estética e humor. "A gente não sobrevive sem o bom humor, e isso não quer dizer que tudo tenha de ser engraçadinho, bonitinho. O humor pode ser arma de ataque e de defesa, pode ser pálido e negro."Espelhado. O humor e a diversão também estão presentes no projeto gráfico e nas ilustrações caleidoscópicas de Daniel Bueno, premiado ilustrador brasileiro. Nas páginas à direita do livro, os limeriques aparecem espelhados e, para lê-los, é preciso usar a primeira orelha do livro, que tem o mesmo tamanho da capa e é feita em papel laminado. A originalidade da produção surpreendeu até mesmo a autora. Aos 93 anos, Tatiana fez as pazes com o espelho, há muito tempo. "O espelho é mágico, e as crianças adoram. Hoje, só quero brincar com isso."

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