Um jogo de ilusões contra a realidade impiedosa

Volume de contos de Wilson Alves-Bezerra é perpassado por um tom paródico que é condição do experimento literário

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Por Moacir Amancio
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Os contos de Wilson Alves-Bezerra em Histórias Zoófilas e Outras Atrocidades lembram autores brasileiros e estrangeiros, contemporâneos e antigos, transparecendo nas entrelinhas, quando não de maneira explícita. Espécie de uso consciente das fontes num cenário de diálogo, ironia e mesmo cinismo, às vezes marcado por tinturas de maldição naturalista. Não se trata de um livro pedante, e sim da obra de um autor que encara a condição culta da literatura como alternativa tão legítima como outra qualquer, concebida como um jogo de ilusões contra a realidade impiedosa e inatingível - de onde o olhar sarcástico e sardônico das narrativas. Engano e autoengano das personagens. O primeiro conto, por exemplo, parece regional, como outros do volume, mas não seriam regionalistas como um Guimarães Rosa ou o Hermilo Borba Filho de O General Está Pintando, isto é, plantados pela linguagem no terreno de referência. Eles são mais para o flutuante, mesmo quando surge algum ponto verificável na geografia. Essa tendência difusa começa com a zoofilia do título, que só se entende no final das contas como as relações amorosas, sexuais e outras entre os seres humanos (bem notado pelo orelhista José Luis Martínez Amaro) relutantes mas presos à animalidade básica, apresentando, até segunda ordem, uma grande diferença com os chamados irracionais: os corpos de homem e mulher talvez se definam porque sofrem a atribuição e o domínio de significados ideológicos. O vínculo entre eles é o vínculo estabelecido pela palavra que pretende ordenar, mas não abole o caos. De algum modo o autor parece refletir o velho e bom Sade, enfim um escritor para escritores e filósofos, ao evocar o mal imanente. Sade atinge a extrema sutileza pelo grito distorcido, pelo humor crispado, pela blasfêmia - estranha num ateu -, sob o torniquete do raciocínio. O que corresponderia ao estilo preciso, "sob controle", do contista, como se manejasse um bisturi afiadíssimo, ágil, sutil. Às vezes a estratégia pode, dependendo do ponto de vista, tornar-se problemática, como em História Infantil, no qual a sexualidade sado-masô insinua-se entre uma garotinha e um menino, numa brincadeira super malvada: ela exige que ele lamba o chão em volta, vibra com isso e, claro, ele não tem saída a não ser admitir que também gostou da experiência. O prazer resulta da fricção entre a censura e o abismo. Bem conduzido, bem escrito, mas entrega de bandeja e chega a raiar o simples clichê - ou seja, o kitsch sem o pulo do gato habitual no livro. Esta é uma leitura. De outro ângulo surge a interrogação obrigatória sobre o papel do clichê nesses contos. O livro todo então passaria a ser encarado de modo muito diferente. Ressalta o tom paródico perceptível desde o início, condição do experimento literário, com as citações, ocultas ou não, de ideias, atmosferas, personagens, trechos. Se o regional não é regional, o urbano, então o fantástico e o realista também não devem ser considerados como tais. Seriam modos de distribuir manchas com o objetivo de mostrar algo além do já visto, seja qual for o nome dessa borradura. MOACIR AMÂNCIO É PROFESSOR DE LITERATURA NA USP E AUTOR DE ATA (RECORD), ENTRE OUTROSHISTÓRIAS ZOÓFILASAutor: Wilson Alves-BezerraEditora: Oitava Rima (164 págs., R$ 30)

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