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Coluna do escritor e arquiteto Milton Hatoum sobre literatura e cidades

Um casamento e a missa

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Por Milton Hatoum
Atualização:

Paramos para ver a festa: pétalas brancas, amarelas e rosadas caíam do céu e cobriam os corpos dos recém-casados. Padeiros, manobristas, pedestres e um catador de papel olhavam para os noivos, agora marido e mulher, trajados a rigor, mas um rigor excessivo, pra lá de pomposo. O casal tinha saído de uma igreja do bairro e se deixava fotografar na calçada de um restaurante, cuja arquitetura hesitava entre o neoclássico e o kitsch contemporâneo. Ele - um varapau com cara de moleque - parecia um adolescente em fase de crescimento. E ela, miúda e serelepe, parecia uma criança que se recusava a crescer. Os dois, abraçados, formavam um par gracioso e insólito, que posava às gargalhadas para dezenas de celulares. Mas bastaria um único disparo de Diane Arbus para que a imagem dos corpos casados se eternizasse no papel fosco. Testemunhava essa felicidade nada clandestina, banhada por um chuvisco de pétalas no fim da tarde de um sábado paulistano. Aos poucos, a plateia plebeia se dispersou: os padeiros voltaram à labuta no balcão e na chapa de aço, os manobristas aos carros enfileirados no meio da rua, o catador de papel à carroça troncha, e os transeuntes à noite que os esperava. Eu, que voltava de uma quitanda e me distraía pelas ruas do bairro, fiquei por ali, espreitando o beijo longo e voraz dos recém-casados, ouvindo sons de axé e celulares, que vinham do pátio do restaurante. Mas nem todos os sábados são festejados com pétalas celestiais, beijos e celulares. Há duas semanas, atraído por uma gravação famosa do Réquiem de Mozart, entrei em outra igreja do meu bairro e me emocionei. Nesse crepúsculo fúnebre não apareceram padeiros, carroceiros nem manobristas, e os transeuntes não pararam para observar beijos discretos e compassivos num rosto masculino, devastado pelo pesar. Enquanto ouvia a composição milagrosa de Mozart, observava o rosto abatido do jovem viúvo diante de uma fotografia da finada. Isso me fez pensar na permanência, e não no fracasso do amor. Como tinha sido a vida amorosa daquela mulher que viajara para o outro lado do espelho? Ali, sozinho, padecia um homem apaixonado, escravo enlutado do belíssimo rosto feminino, que eu só pude ver na fotografia colorida; um rosto também jovem, que deixara cedo demais esse mundo maluco. Pensei: a morte prematura da mulher nem deu tempo de transformar a paixão em afeição. Daqui a 10 ou 15 anos ainda seria bela? Ainda ostentaria o olhar aceso e fiel que eu observava na imagem fotográfica? Eu era apenas um intruso curioso nessa missa fúnebre. O intruso saiu da igreja e parou para ouvir a parte final do Réquiem; depois andou a esmo, com o estado de espírito tão diferente do passeante que se distraíra bestamente com pétalas e gargalhadas de um outro sábado.

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