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Coluna quinzenal do escritor Ignácio de Loyola Brandão com crônicas e memórias

Opinião|Trazer-me ao mundo, uma boa ação de dona Corina

Desolado, na noite de primeiro de janeiro, depois dos brindes, liguei, como todo mundo, a tevê para ver como o Brasil passava o ano. A Globo, sádica, alternava os fogos do Rio de Janeiro com os de São Paulo, na Paulista. O nosso parecia festa de São João no arraial com fogos caramuru, traques, busca-pés, rodinhas. Como diria aquele prefeito carioca, foi uma chinelada na bunda dos paulistas.

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Atualização:

De manhã, caminhei por uma rua absolutamente deserta. São Paulo de ficção cientifica. Nada, ninguém. Tudo fechado. Virei a esquina, o sujeito sentado na sarjeta, bêbado, me abordou, “feliz ano novo, doutor”, e estendeu a mão. Enfiei a mão no bolso da bermuda, tinha uma nota de cinco, entreguei, ele queria me abraçar. Avisei, é pra beber uma cachacinha, ele fez sinal de positivo com o polegar.

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Continuei, mas não estava mais em São Paulo. Na infância, bem cedo ocupávamos as ruas de Araraquara no primeiro de janeiro. Éramos ingênuos, achando que levantar cedo representava um handicap favorável, chegaríamos na frente dos outros. Porque eram centenas de pobres que saiam em um ritual comum em todo o interior. Ir de casa em casa, desejando feliz ano novo. Ainda que meu pai proibisse de chegar tarde, na noite anterior eu conseguia um jeito de caminhar olhando janelas e portas abertas (ninguém trancava nada, era tudo escancarado) para ver as árvores de Natal e os presépios que só seriam desmontados no 6 de janeiro, dia de Reis. As mesas enfeitadas e as comidas me produziam água na boca.

Bater às portas e desejar feliz ano novo podia render dinheirinho, pedaços de bolo, coxinhas ou empadas. Eu ansiava por um figo seco, coisa de filmes das mil e uma noites, que via junto com o Zé Celso Martinez Correa, éramos fãs da Maria Montez e da Yvonne De Carlo. Não raciocinávamos que muito cedo estávamos acordando pessoas que, tendo dormido tarde, abriam a porta furiosas. Afinal, eles, os que achávamos serem ricos, festejavam o ano novo com champanhe e coisas caras. Portanto, tinham ido dormir tarde.

Era preciso chegar arrumadinho, não dar pinta de pobre. As pessoas odiavam os mendigos, os esmoléres, vagabundos, fechavam as portas com estrondo. Já um garoto “limpinho” merecia consideração, traduzida em um pedaço de bolo, um pouco daquelas passas, que vinham em caixinhas vermelhas, nas quais se lia Sun Made Raisins. Tâmaras? Dizia-se que vinham no Egito, da Grécia e do deserto. Comi a primeira quando tinha 25 anos, em São Paulo, na casa do diretor e produtor de cinema Fernando de Barros.

Era comum oferecerem um copo de guaraná ou uma maçã, pois estas só comíamos quando estávamos doentes. Panetones? Não me lembro deles nos anos 40. Os bolos cheios de frutas era feitos em casa ou encomendados para gente como Sebastiana Gurgel, exímia, que poucos sabem ter sido mãe do novelista Amaral Gurgel, da Rádio Nacional, o Gilberto Braga, o Silvio de Abreu, o Walcyr Carrasco das radionovelas da época. Gurgel, mais um daqueles talentos araraquarenses, começou como ferroviário da EFA e era um craque, foi para o Rio de Janeiro, dava o maior Ibope – nem sei se existia Ibope – prendia todo mundo ao rádio, depois da chatíssima Hora do Brasil, à noite.

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Nessa via sacra que durava a manhã inteira, íamos em busca de dinheiro, voltávamos com balas, chocolates, bombons. O dinheiro era para a matinê, ou para os gibis usados vendidos na Banca do Nelson Rossi. Odioso era vermos a porta abrir e ao desejarmos boas festas, as pessoas responderem:

– Feliz ano novo para você também, extensivos aos seus!

Tinha um agiota, que todo mundo detestava, mas dele se socorria. Mão de vaca, morreu num primeiro de janeiro. Ninguém apareceu para o enterro, naquele tempo o velório era feito em casa. Na hora de sair para o cemitério, havia apenas a viúva para levar o caixão. Ela saiu de casa em casa pedindo ajuda, ninguém abriu a porta, assim como o agiota e sua mulher nunca abriam para a criançada. Soube disso pelo diz que diz, meus pais não me deixaram verificar.

Um dia, na casa do professor Jurandir Ferreira, um dos craques em português, ao desejar feliz ano novo, ouvi uma resposta esquisita:

– Obrigado, meu menino. A recíproca é verdadeira.

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Tive de perguntar ao meu pai o que era recíproca. Quanto ao professor Luciano, de latim, nos olhava e dizia: “Te dou mil réis se me disser a primeira frase de De Bello Gallico”. Mil réis era uma fortuna, mas só soube a frase anos depois no ginásio, quando ele mesmo ensinou: “Gallia est divisa in partes três”. Um ano, rejubilei-me ao bater na porta da papelaria Neide. O dono, Geraldo Neves, me deu, imaginem, uma caixa de lápis de cor com 24 cores, um deslumbre. Geraldo veio a se casar com Maria Helena de Moura Neves, uma das glórias da cidade, linguista que trabalha com teoria e análise linguística, escreveu várias gramáticas e muito mais.

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Certa vez, na esquina da rua Quatro com a então avenida Guianases, bati numa porta, desejei feliz ano novo, a senhora veio com um pacotinho de bolacha Champanhe, delícia das delícias, a que eu mais adorava. Quando cheguei em casa, minha mãe se comoveu: “Saiba meu filho, que aquela é a dona Corina, a parteira que te trouxe ao mundo”.

Nunca esquecerei essas duas boas ações de dona Corina, as bolachas Champanhe e a de ter me trazido a este mundo, onde estou (estamos todos) surfando sobre ondas tenebrosas, mas de bem com a vida aos 79 anos. Essa mulher simplesmente participou do momento mais feliz de toda a minha vida até hoje, o ter nascido. Mesmo com tudo que está aí, nasceria de novo, sem esmorecer.

Opinião por Ignácio de Loyola Brandão
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