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Todo coração

Por HUMBERTO WERNECK
Atualização:

Uns meses antes ele me ligou, tarde da noite, pedindo ajuda para uma questão de língua portuguesa. Não era a primeira vez, e, como nas anteriores, disse que aquela não era a sua praia, muito embora, digo eu, estivesse longe de ser um desastre. Não passaria vergonha sem o ambulatório ortográfico e gramatical do irmão, mas, perfeccionista mesmo fora de seus territórios, não se permitia o menor deslize. Ainda mais naquele texto, uma carta para o nosso pai, e não uma carta qualquer, portadora que seria de puro amor de Flávio - um tumulto a jorrar do coração para os dedos, aqueles dedos desde cedo trêmulos de tanta ansiedade de viver, e à sua maneira: tudo, muito e sem tardança, como se soubesse que não teria tempo de ser velho. Nos trâmites de resolver a tal questão, afinal mínima, fiquei sabendo o que o levara a escrever as bem traçadas linhas, tão diferentes da prosa de profissional da cinofilia que ele volta e meia me passava para corrigir. Terminado o dia de trabalho no canil, Flávio tinha subido para a casa. Contornou a piscina, tomou o último lance de escadas, levantou a vista e deu com a lua apontando imensa por sobre o telhado. E então lhe veio, aos borbotões, uma urgência de agradecer a alguém por tudo o que tinha - a carreira vitoriosa, o casamento com a Daniella, o filho Bruno e, a poucas semanas de nascer, a Laura -, e instantaneamente se lembrou do pai. Poderia ter telefonado, explicou na carta, mas e o medo de desabar no choro e não dar conta de dizer palavra? Quem duvidaria? Três anos antes, nos últimos dias da mamãe, Flávio e eu, os "paulistas" da família, dividíamos um quarto na casa dos pais, em Belo Horizonte. Acordei no meio da noite e, amargurado, chorei, o mais discretamente que pude - não o bastante, porém, para que ele também não acordasse e, já aos soluços, se incorporasse às minhas lágrimas, antes mesmo de indagar: "Por que você está chorando aí?". A gente se via menos do que gostaria, e nem tanto porque nos separassem 30 e tantos quilômetros, eu em São Paulo, ele num sítio em Cotia, quando não no exterior. Certa vez, chegando a Nova York, ele me esperava no aeroporto; levou-me até o apartamento que, morador em Nova Jersey, mantinha em Manhattan - e não mais o vi nos dez dias que passei na cidade. Flávio vivia com o pé na estrada, num batente que não se limitava ao calendário dos desfiles e exposições. Lembro-me de viagens malucas que fez a diversos países para comprar cachorro encomendado por clientes endinheirados, malucas porque não raro voltava no dia seguinte. Esmerilhou por aí, em tudo quanto é canto do mundo, seus febris 46 anos de vida, conhecido e reconhecido que era como notável handler (se você é mais leigo do que eu: aquele camarada que desfila cães, o que, aprendi, é mais que técnica, é quase arte). Passou extensas temporadas nos EUA, quase ficou por lá. Quando vinha ao Brasil, uma semana antes eu ficava sabendo que seria outra vez anfitrião, não por ele, pelos telefonemas que despencavam em minha casa em variadas línguas, de colegas e clientes seus. Simpático, aquele meu irmão, e muito sedutor, mas eventualmente espaçoso - e falo com a autoridade de quem foi seu procurador, encarregado de desembaraçar no Brasil as burocracias de sua por vezes caótica vida prática. Se eu bobeasse, acabava encarregado de "favorzinhos" que consumiriam horas. Saudade até disso. Num canil em Nova Jersey, firmou-se também como disputado formador de profissionais da cinofilia. Foi lá que se ligou de vez à Daniella, linda peruana, 20 anos mais jovem, que conhecera em Lima e com quem se casaria uns dias antes da morte de mamãe. Na última conversa que tivemos, por telefone, ele falou do cansaço que finalmente baixara, e contou de uns planos - voltar para os EUA, onde poderia, quem sabe, armar um cotidiano mais pausado, que lhe desse tempo para a família, ou mesmo deixar a cinofilia como ofício, devolvendo-se à carreira de administrador de empresas precocemente interrompida. Sonhos, suspirou. Por ora, era encarar o desfile do próximo domingo, em Brasília, e, logo no dia seguinte, mais uma viagem, dessa vez ao México, e depois outra, e outra, e outra... Até que Deus, faz agora 13 anos, quisesse uma carreta pela frente, fechando para a Dani e o Flávio a estrada e a vida. (Para o Bruno e a Laura)

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