Tintim: tradição e modernidade como estética política

Personagem de HQ do belga Hergé está em três lançamentos da Cia. das Letras

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Por Agencia Estado
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Tradição e modernidade dão o tom das obras do quadrinhista belga Hergé e seu lendário personagem Tintim lançadas agora pela Companhia das Letras. Nos três livros em quadrinhos, A Estrela Misteriosa, O Segredo do Licorne e O Tesouro de Rackham, o Terrível o autor mostrava o que havia de mais avançado nas ciências e tecnologias da década de 40, mesclado com um característico cavalheirismo europeu. Simbólica de sua época, esta estética de duplo sentido foi uma das mais poderosas forças políticas daquele período. Para além do consumo, o passado tradicionalista e o futuro tecnológico foram dois dos elementos mais usados para consolidação das maiores potências mundiais do século 20. Os três livros, com histórias interligadas, mostram as aventuras do simpático repórter Tintim em busca de tesouros diferentes, mas de equivalente valor. Em A Estrela Misteriosa o herói acompanha uma expedição de cientistas ao Ártico em busca de um meteorito com propriedades químicas desconhecidas. No Segredo do Licorne, Tintim e o rabugento Capitão Hadock se vêem às voltas com criminosos à procura de um mapa do tesouro escondido na miniatura de um navio francês. Em O Tesouro de Rackham, o Terrível, Tintim e seus companheiros finalmente partem em busca do almejado tesouro de um pirata do século 17 - como sempre, contando com as mais modernas parafernálias subsidiadas por eminentes cientistas. Sempre distinto, Tintim se mostra aberto às novas experiências do mundo que o cerca. Tem extrema confiança nas instituições e especialmente na ciência. Em A Estrela Misteriosa se mostra totalmente avesso à superstição. Quando, junto ao seu inseparável cão Milú, percebe uma sutil diferença na disposição das estrelas, se diz intrigado. "Assim que chegarmos em casa vou telefonar para o Observatório". Qualquer coisa além de surpresa é especulação. Cair no erro é tolice. Há de se procurar um especialista. Interpelado por um pretenso profeta que vê o fenômeno astronômico como o sinal do fim do mundo, Tintim empresta sua sensatez: "Escute aqui, seu profeta: vá dormir. É melhor para o senhor e para todo mundo". Volta ao passado Em O Segredo do Licorne, volta-se para o passado. Quando Tintim presenteia seu amigo Capitão Hadock com um modelo do galeão Licorne, este revela que o tal navio foi comandado por um antepassado seu que viveu na época de Luis XIV (1643-1715). Impressionado, Tintim escuta fascinado Hadock contar a história do ancestral. Atacado por um navio pirata, diz que o capitão foi obrigado a explodir a embarcação espalhando seus tesouros pelo mar das Antilhas. Conseguindo escapar, o velho comandante deixou um mapa escondido nos modelos da nau para seus descendentes. Com o passado determinando o futuro, abre-se uma nova aventura para Tintim e o Capitão Hadock. O Tesouro de Rackham é particularmente interessante. Editado originalmente em 1945, a capa da HQ já é emblemática: Tintim e Milú, a bordo de um submarino em forma de peixe protegido por uma carlinga semelhante a um avião, observam admirados a vastidão do fundo do mar. Tal imagem pode parecer um tanto démodé hoje em dia. Exploração submarina é algo corrente há no mínimo 40 anos. No entanto, imagine-se o jovem leitor daquele tempo. A obra de Hergé, ao mesmo tempo em que visitava lugares comuns à experiência e à memória européia, projetava um futuro moderno e fascinante. Hergé, simpatizante dos nazistas Esse é o teor da obra de Hergé, pseudônimo de Remi Georges (1907-1983). As aventuras de Tintim são um vasto repertório de imagens fiéis à realidade. Era uma das prioridades do autor visitar sempre os locais que retratava dando textura e cores dos ambientes mais estranhos. Atento ao progresso da ciência, Hergé incluía nas suas histórias os últimos avanços da tecnologia. O autor teve sua obra marcada por um claro posicionamento político. A primeira aventura de seu personagem, Tintim, repórter do Petit Vingtiéme no País dos Sovietes, uma raridade originalmente publicada em 1929 que criticava aquela nova força política chamada comunismo. Petit Vingtiéme, aliás, era o nome da revista católica na qual o próprio Hergé trabalhava. Álvaro de Moya, autor de História das Histórias em Quadrinhos, Shazam! e O Mundo de Disney, disse ao Estado que Tintim no País dos Sovietes foi uma obra encomendada. Mas era mais que natural que Hergé fosse anticomunista. O que pode soar estranho é que ele também fosse colaborador dos nazistas. Descobertas após sua morte, as inclinações políticas de Hergé abrem espaço para uma série de especulações sobre o conteúdo de sua obra. Dizer que suas revistas fazem apologia ao anti-semitismo ou diretamente ao próprio nazismo é absurdo. Por outro lado, o que se nota, certamente, é uma semelhança com a estética do nazismo. É difícil negar que a obra de Hergé caminhe pela via observada pela ensaísta Susan Sontag, ao comentar o trabalho de Leni Riefenstahl, a cineasta oficial do Terceiro Reich: "O documento (a imagem) não é apenas o registro da realidade, mas é uma razão para a qual a realidade foi construída, e deve, eventualmente, suplantá-la". Quando Tintim dá um basta no delírio do profeta, parece estar querendo substituí-lo por algo mais palpável. Prefere dar ouvidos a uma autoridade maior, racionalmente estabelecida, o cientista do observatório. Pouco importa se a imagem contida no desenho é verídica ou não. O que parece ser a mensagem em Timtin é um "dever ser". Trata-se de uma discussão delicada. "Hergé foi colaborador dos nazistas no tempo que a Alemanha invadiu a Bélgica. Quando terminou a guerra, todos os que foram colaboracionistas foram condenados. Algumas pessoas foram poupadas", afirmou Moya. A atriz do cinema francês Danielle Darrieux e o próprio Hergé foram alguns deles. Entretanto, "não se sabia que Hergé estava inclusive mandando dinheiro para os nazistas foragidos no Brasil, na Argentina e outros países na década de 50". Entretanto, segundo Moya, comparar a obra de Hergé com a de Leni Riefestahl é um exagero. "Hergé é muito mais parecido com Walt Disney, com um traço simples, canhestro." Sob este olhar, quem acha que a obra de Hergé possui um caráter totalitário deve pensar que ele não foi o único a conciliar modernidade e tradição em torno de um herói. O Capitão América possuía exatamente as mesmas características. Criado em 1941, ele sintetizava o espírito americano no tempo da 2.ª Guerra Mundial. Em suas histórias, Steve Rogers, identidade civil do herói, passou de jovem franzino a super-soldado pela milagrosa invenção do Dr. Reinstein, um super-soro que transformava qualquer sujeito normal em um atleta indestrutível. No entanto, não foi o soro que fez do Capitão América um símbolo de patriotismo: isso já era a raiz de sua identidade. Com Tintim, Capitão América e outros heróis dos anos 40, arte e convicções ideológicas são absolutamente inseparáveis. A Estrela Misteriosa - O Segredo do Licorne O Tesouro de Rackham, o Terrível, de Hergé. Editora Cia. das Letras. 64 págs. e R$ 34,50, cada exemplar.

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