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Terror light

Vencidos nas armas, os reis do petróleo bolaram sua vingança: quebrar o cassino de Mônaco

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Por Humberto Werneck
Atualização:

É uma história antiga, pra lá de quarentona, e se venho desempoeirá-la é por ver nela, entre outras virtudes, um pegar-leve que no mundo de hoje me parece faltar. 

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Foi em 1974 (sim, eu estava lá, e já contabilizava meia dúzia de cabelos brancos), poucos meses depois do brutal solavanco econômico que ficaria conhecido como “a guerra do petróleo”. Mais detalhes no Google, por favor, caso não lhe baste esta versão desossada dos acontecimentos: derrotada militarmente numa tentativa de retomar territórios incorporados por Israel em 1967, uma coalizão de países árabes ricos em petróleo reagiu aumentando os preços de seu produto em até 400%, o que veio chacoalhar de ponta a ponta a economia mundial. De uma hora para outra, nações desenvolvidas, não necessariamente aliadas de Israel no conflito com os árabes, se viram compelidas a regular o uso de cada gota de óleo, e isso em pleno inverno, quando, no Hemisfério Norte, ele se torna ainda mais indispensável.

Estavam as coisas nesse pé quando se soube que uns tantos príncipes sauditas haviam desembarcado em cassinos europeus, aparentemente dispostos a quebrá-los, não com explosivos ou vans desgovernadas, como faria hoje o Estado Islâmico em seu pegar-pesado, e sim com suas inesgotáveis provisões de dólares, que o aumento de preço tornara ainda mais obesas. 

Este cronista, então repórter, nem precisaria ter sido destacado para cobrir a passagem de Suas numerosas Altezas pelas roletas de Mônaco para se lembrar do que foi, tão ruidosa quanto ruinosa, a revoada de kanduras, aquelas túnicas brancas, nos domínios de Rainier III e da princesa Grace. O mais graduado dos visitantes – ou invasores, havia quem dissesse – era Fahd bin Abdul Aziz Al-Saud, sexto entre os mais de 40 filhos do rei Ibn Saud, o fundador, em 1932, da moderna Arábia Saudita. 

Reinava o rechonchudo Fahd sobre vasta comitiva, nela incluídos os salamaleques de um cortejo de serviçais. No grau mais elevado, mais como amigo da família, figurava um plebeu, Adnan Khashoggi, rico o bastante para possuir, atracado na marina de Monte Carlo, como infra flutuante, um iate provido de confortos básicos como torneiras de ouro. 

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Entre outros agrados, cuidava Khashoggi de mandar a Paris, de quando em quando, à falta de tapete voador, um jato de bom tamanho, para de lá trazer plantéis de prostitutas, incumbidas de girar em Monte Carlo no mesmo ritmo das frenéticas roletas do principado. A irresistível demanda, murmurava-se, chegou a desabastecer por alguns dias mais de um bordel parisiense. 

Discreto, o potentado saudita não chamava tanto a atenção quanto um servidor de suas hostes, encarregado de acompanhar os príncipes aonde fossem, arrastando alentada mala – repleta, soube-se logo, de dólares, para pagamento de despesas como contas de restaurante, num tempo anterior aos cartões de crédito. 

Afeito ao trato com milionários da mais diversa tiragem, um garçom do bar do Hôtel de Paris ainda assim se arregalou ao revelar ao repórter que em pelo menos uma ocasião o portador da mala, para fechá-la, precisou sentar-se sobre ela, tão farto era o seu recheio. 

Numa daquelas tardes, tendo servido um lanche aos príncipes, o mesmo garçom levou gorjeta de 100 dólares. Para que se tenha uma ideia do que era isso: em 1974, um bolsista do governo da França, este que vos fala, bastava-se em Paris com o equivalente a 200 dólares mensais. O que você fez de tão especial para merecer essa fortuna?, quis saber o abelhudo jornalista. Nada, respondeu o garçom – e, excitado, descabelou a circunspecção de seus 60 anos de idade: “Por 100 dólares, caro amigo, eu topo até dançar a dança do ventre!”.

No recinto do cassino, a que abelhudos não tinham acesso, mas de onde vazavam inconfidências, os príncipes sauditas, movidos exclusivamente a suco de laranja, nos conformes dos preceitos de sua religião, jogavam despreocupadamente, atirando a esmo fichas de valor máximo, como você e eu arremessamos cascas de mexerica. Perdiam? Ganhavam? Para eles, não fazia a menor diferença. O importante era jogar, e, em inédita modalidade de terror light, passar um susto naqueles capitalistas ocidentais.

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Assustado com a possibilidade de que os jogadores, dispondo de fundos ilimitados, viessem a quebrar a banca, o que significaria quebrar o próprio principado, o gerente do cassino tratou de impor regras. Suas altezas são muito bem-vindas, decretou, mas têm que usar paletó e gravata. Ah, é? Na próxima vez, lá estavam eles com um disparatado figurino em que o camisolão árabe e o agal, aquela rosca negra na cabeça, conviviam com casaco e nó na goela. 

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Já em desespero, o gerente determinou que a jogatina não poderia mais estender-se por 24 horas, devendo encerrar-se às 4 da matina. Informado de que a bolinha pararia de correr, Fahd, àquela altura credor de uma bolada, decidiu cobrar o que lhe era devido. Pois não, apressou-se o gerente, sacando o talão de cheque. Nada disso, cortou o príncipe: em dinheiro vivo. Foi preciso tirar da cama o responsável por uma agência bancária. 

Os príncipes gostaram da brincadeira, e daí por diante transformaram em rotina despertar o pessoal de algum comércio fino, uma joalheria, por exemplo, quando plena madrugada lhes batesse urgência de presentear uma das moças importadas de Paris. 

A farra não foi longe, e, malgrado o susto que provocou, não chegou a abalar as estruturas do principado de Mônaco. Como era de prever, as potências ocidentais aos poucos deram a volta à crise ateada pela Guerra do Petróleo. Quanto a Fahd bin Abdul Aziz Al-Saud, a morte do pai, seis anos mais tarde, plantou-o no trono saudita, pináculo que ele, muitíssimo bem-comportado, ocuparia até a morte, em 2005.

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