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Retratos e relatos do cotidiano

Sorte

Terça-feira acordamos atrasados. Ele tinha reunião com os investidores, eu tinha que resolver urgências do escritório

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Por Ruth Manus
Atualização:

Terça-feira acordamos atrasados. Ele tinha reunião com os investidores, eu tinha que resolver urgências do escritório. No entanto, já estabelecemos que a pressa não nos deve subtrair o café da manhã por razões de saúde do corpo, do bolso e do relacionamento. Ele pegou o pão, o queijo e o peito de peru para colocar no tostex. Eu peguei o leite, a banana meio velha e o farelo de aveia para bater no liquidificador. Os sanduíches ficaram prontos, a vitamina de banana cansada também. Peguei os copos, pousei-os ao lado do liquidificador. Peguei o vidro de farelo de aveia para guardar no armário. Ele tirou a tampa do liquidificador e segurou a base para puxá-lo.

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Foi então que a terça-feira começou.

A mão que pretendia segurar a base acabou pressionando o botão para ligar o aparelho – que já estava sem tampa. Eu não sei se consigo narrar o que houve.

Voou vitamina de banana até em lugares que eu nem sabia que existiam na nossa cozinha. A parte óbvia foi nas paredes, no armário, no chão, no teto. A parte surpreendente foi a vitamina de banana que entrou na cafeteira, no puxador da máquina de lavar louça, na caixa de Ferrero Rocher, nos buracos vagos de comprimidos da minha cartela de vitamina C. Eu fui salva pela porta do armário que se fez de escudo matinal, já o pijama dele foi perda total.

Eu ri. Ri bastante. Ele não achou muita graça. Sobretudo quando percebemos o cheiro de queimado. O benjamim que ligava o liquidificador, a cafeteira e o tostex à tomada estava coberto de vitamina. Curto-circuito, o plástico branco pretejou. O liquidificador queimou. O fusível caiu, ficamos sem luz. Limpamos a cozinha, nos atrasamos mais e fomos tomar o que restava do café. Dois copos, cada um com três dedos da vitamina de banana que sobrou e dois sanduíches tostados frios. Sentamos na varanda. Eu ri. Ele riu. Uma abelha entrou no meu copo. Nem tentei discutir com ela. Só pensei na minha sorte. 

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Sorte por ele existir e sujar tudo. Sorte por limparmos a cozinha juntos. Sorte de achar graça na vitamina voadora de banana cansada. Sorte por acreditar na sorte. Sorte por ver tanto amor naquela manhã errada. 

Parece que a alegria bate na porta todas as manhãs. A questão é deixá-la entrar ou não. E entender que às vezes ela entra em forma de boa notícia, de beijo na testa, de raio de sol ou de cozinha imunda. Parece que a sorte é permitir que ela entre e saber reconhecê-la, ainda que pouco óbvia.

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