Sobre o sentido pleno de existir

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Por REGINA SCHÖPKE É FILÓSOFA , HISTORIADORA , AUTORA DE POR UMA FILOSOFIA DA DIFERENÇA (CONTRAPONTO) , DICIONÁRIO FILOSÓFICO (MARTINS) e ENTRE OUTROS TÍTULOS
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REGINA SCHÖPKEPara alguns, o alemão Martin Heidegger (1889- 1976) é considerado o maior filósofo do século 20; para outros, no entanto, independentemente da importância que tem sido atribuída à sua obra, é impossível não julgá-lo pela sua ligação com a perversa política do 3.º Reich. De fato, não deixa de ser um contrassenso supor que "o maior filósofo do século 20" careça exatamente de espírito crítico e filosófico. Mas, então, como pensar Heidegger e sua obra diante dessa sombra ou mancha moral? Como aceitar que um filósofo possa fechar os olhos para a ética e para a liberdade, submetendo-se a um regime ditatorial e, ainda assim, manter-se íntegro no campo das ideias? Pois bem, muitos podem alegar que é preciso dissociar a obra do seu criador ou que a "criação do filósofo" não pode ser maculada pelos "erros do homem". Será que isto é mesmo possível? Como, afinal, pensar um filósofo sem aquela antiga coesão de que Nietzsche tanto nos fala entre o pensamento e a vida? Se Kant está certo, um artista, por exemplo, nunca é plenamente consciente da sua criação e mesmo tendo talento, ele pode até ser um homem ingênuo, contudo não é possível acreditar nisso quando se trata de um filósofo - que, como bem diz Schopenhauer, precisa sempre "estar de olhos abertos enquanto os outros dormem". De fato, ficaram muitas dúvidas com relação às posturas de Heidegger (embora certos fatos sejam mesmo inegáveis). Mas, de certa forma, a obscuridade da sua vida não deixa de ser também a da sua obra (ou seja, as lacunas de uma parecem refletir as lacunas da outra). Talvez porque o que marcou o pensamento do século 20 (refém de um niilismo profundo, já previsto por Nietzsche, por conta do desmoronamento da metafísica tradicional) foi exatamente a sua ruptura com a vida, ou seja, a ruptura do pensamento com seu compromisso ético de produção de uma existência mais digna e verdadeira. É isso que, no fundo, explica que um pensador essencialmente acadêmico e formal possa ser considerado o maior filósofo desse período.Seja como for, é inegável que Heidegger foi fundamental para estabelecer os rumos da filosofia contemporânea. E aqui não nos referimos apenas ao existencialismo francês, mas também às filosofias que nasceram desta nova perspectiva de pensar o ser como temporalidade, como existência. De fato, Heidegger abriu novos caminhos para a reflexão, mas, de qualquer forma, a sua busca por uma nova ontologia não pode ser entendida fora da esteira do pensamento nietzschiano, cuja crítica radical à metafísica já havia jogado por terra as ideias tradicionais de "ser", de "transcendência", de "universais", etc., forçando todos os que vieram depois a seguir uma nova trilha do pensamento.Sim, Heidegger é devedor de Nietzsche, e isto é muito natural na filosofia. A metafísica ruiu com Nietzsche e não com Heidegger. Heidegger é filho desse desabamento; e é movido por ele que este filósofo pensa em produzir uma nova ontologia (o que não deixa de ser o primeiro sintoma de obscuridade de sua filosofia; afinal, por que voltar à questão do ser ou por que distinguir um ser geral de um ser particular, o Dasein, que, ainda assim, é parte desse ser geral?) Bem, seja como for, Ser e Tempo é a primeira obra de peso, desde Nietzsche, a se arriscar pelos precipícios de um mundo sem o aval da metafísica tradicional. E nisso ela é fundamental, mais do que em suas considerações ou conclusões. Trata-se, afinal, de uma obra inacabada, a primeira parte de um tratado sobre o ser concebido por Heidegger - que, entretanto, a despeito de todo o seu esforço intelectual, não conseguiu, até o fim da vida, chegar a uma resposta clara acerca desse "Ser" que abarca todos os entes, ou no qual todos eles "habitam". Ser e Tempo, sem dúvida, é uma obra de fôlego, e, agora, na brilhante tradução do professor emérito de filosofia da Unicamp, Fausto Castilho, ela nos chega numa bela edição bilíngue. Fausto, que frequentou um dos cursos de Heidegger na Universidade de Freiburg, defende a importância de poder confrontar a tradução com o texto original do autor, por conta da complexa polissemia de seus conceitos - ainda que sua tradução prime por uma clareza que, em alguns momentos, quase nos faz esquecer do hermetismo da obra. Seja como for, é nesta obra que podemos vislumbrar esse "filósofo do ser" (como o próprio Heidegger se autodenominava) buscando traçar as bases de uma nova ontologia. Considerado um dos pilares do existencialismo, ele, porém, nunca aceitou a alcunha de existencialista, já que seu interesse não se assentava no ente, e sim na compreensão do ser deste ente. É claro que a ideia heideggeriana do homem como um "ser" à parte (entendendo-se por isso que ele não seja uma "coisa" entre outras coisas - ou um ente entre outros entes -, mas o único do qual se pode dizer que realmente é "ser", que "existe" plenamente, já que é o único a se interrogar sobre o sentido de sua própria existência, o único a tomar nas mãos o próprio destino) influenciou toda a corrente existencialista. No entanto, sua intenção era partir do homem, do Dasein (esse ser aí, lançado ao mundo, que se constrói em seu próprio caminhar), para chegar à compreensão do ser em geral.Fundar uma nova ontologia é, portanto, a proposta de Ser e Tempo que, segundo o próprio Heidegger, está inextricavelmente ligada a uma necessidade expressa de repetição da pergunta sobre o ser. Para Heidegger, é preciso, antes de mais nada, perguntar, contínua e incessantemente, pelo "sentido do ser" ou, mais propriamente, pelo "sentido de ser", de "existir": é isso que ele apresenta desde as suas primeiras páginas. Afinal, o ser é, ao mesmo tempo, o mais geral e o mais vazio dos conceitos, permanecendo indefinível: eis porque a pergunta sobre o seu sentido deve preceder qualquer proposta ontológica. É a partir daí que ele pretende estabelecer a diferença fundamental entre a sua ontologia e a ontologia antiga, sobretudo, a aristotélica, onde o "ser" teria sido, segundo ele, "entificado", isto é, confundido com o dado imediato, com a "coisa", com os seres físicos em geral, o que teria feito do homem apenas um ser dentre outros seres do mundo.Sim, já dissemos que, para Heidegger, o Dasein não é um ser entre outros, mas o ser no seu sentido mais pleno, o único que se pode chamar verdadeiramente de ser e, sobretudo, o único a perguntar "sobre o sentido de ser". Neste ponto, é impossível desligar a ontologia heideggeriana da linguagem que nos constitui como seres à parte, embora esta pergunta pareça ter se perdido no emaranhado da própria linguagem que lhe deu nascimento.Em todo caso, "ser", para Heidegger, quer dizer primeiramente "existir", estar no mundo de um modo específico. O ser, neste sentido, é "temporalidade" pura, é um "fazer-se" contínuo no tempo. Porém, ele é, sobretudo, "transcendência", porque o ser só se "completa", para ele, quando ultrapassa a sua cotidianidade e se torna um si mesmo, ou seja, sai da esfera do "eles" para entrar na esfera profunda do "eu". "Existir", portanto, ganha um sentido aqui de interioridade e também, ousamos dizer, de ensimesmamento inexpugnável. De fato, transcender, para Heidegger, refere-se à capacidade do Dasein de poder tomar nas mãos o seu próprio destino, mas se isso significa romper com o mundo sem a antiga perspectiva filosófica da produção de novos valores para o próprio mundo, então chegamos, de fato, ao ápice da ruptura entre o pensamento e a vida. Não é sem razão, portanto, que a "angústia" é, para Heidegger, a condição primária do homem (este ser-para-a-morte, que não pode olhar para o futuro sem se deparar com a finitude em seu horizonte). Afinal, para que serve essa transcendência senão para produzir uma vida partida? Desde Nietzsche, ele foi o primeiro a se arriscar pelos precipícios de um mundo sem o aval da metafísica tradicional

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