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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Só mais uma, para garantir!

Como analisou Benjamin, a abundância de imagens é o esvaziamento do olhar

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Atualização:

Todos somos testemunhas privilegiadas (ou amaldiçoadas) da vitória da imagem no mundo. Tudo é registrado muitas vezes. Desde seu surgimento na primeira metade do século 19, a fotografia não parou de crescer como recurso técnico, comunicativo, artístico e social. 

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Eu pertenço à última geração que ainda tinha formalidade com fotografias. Filmes caros, flashes limitados, máquinas com alguns desafios e nem sempre disponíveis, revelações demoradas: em breve essa será uma memória como a do uso da pena para escrever. 

Cada aniversário da nossa infância tinha o mesmo ritual. Havia um bolo especial e decorado, os parabéns e, por fim, uma foto, uma apenas, com todos atrás da mesa principal e reunidos em poses mais formais. As fotos eram uma forma de os pais provarem, no futuro, que tinham sido atenciosos. 

Registros casuais eram raros. A banalização da imagem foi descrita, em parte, no famoso texto de Walter Benjamin sobre a “reprodutibilidade técnica”: a multiplicação infinita acompanhada da perda da “aura”. Imagens ficaram banais. Uma festa infantil deve gerar, hoje, mais imagens do que todo o século 19. 

Vivo a cena há alguns anos. As palestras são fotografadas e filmadas por dezenas, centenas de pessoas. Direito de imagem tornou-se falácia. O direito está na mão do proprietário do aparelho. E, não bastassem os milhares de cliques, ao final, uma fila para fotos. A experiência é a foto, talvez mais do que a palestra. 

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O procedimento é lento. A pessoa pede uma foto, eu concordo, ela entrega o celular a uma outra pessoa conhecida ou não. Passo seguinte: o celular tem senha e volta à proprietária. A senha é digitada e dá acesso aos comandos e o celular é reentregue ao fotógrafo incidental. Novo problema: cada aparelho tem uma lógica funcional e surge uma dúvida: onde eu aperto? O celular volta à proprietária que indica para a pessoa em dúvida (dúvida com celulares sempre quer dizer que a pessoa tem mais de 30 anos, quem é jovem jamais tem problemas com aparelhos). Finalmente, o momento chega e a foto é realizada. A foto? Não, as muitas fotos, pois a primeira é acompanhada de um bordão do mundo líquido: “Mais uma, para garantir”. Garantir exatamente o quê? Mistério profundo... Duas? Na maioria das vezes, o pedido complementar: faça várias! Como um cartão da Mega-Sena, a multiplicação de apostas mira num prêmio, mais claro na loteria do que na imagem. 

Recapitule, querida leitora e estimado leitor: eu estou sorrindo durante todo o processo, congelado. Mantenho os dentes em estado de exibição e marco o vinco da alegria no rosto que, como já descobri, permanece lá depois do sorriso, pois colágeno e alegria tendem a desaparecer. Atrás da pessoa que está fazendo a foto, há uma fila com outras centenas que repetirão, como liturgia estruturada, o mesmo procedimento. 

O carinho das pessoas é grande e a ansiedade também. Tento entender que aquele momento é único para ela, um pouco menos especial para mim. Há momentos em que estamos na pessoa de número 546 e o brilho do meu olho desapareceu na de número 389. Há momentos piores nos quais estou correndo para um avião ou digitando uma mensagem fundamental para a família e alguém joga a tela do celular na minha cara e pede um vídeo para sua tia-avó que é minha fã. Algumas abordagens são muito delicadas, outras fariam Átila corar. Certa vez, no aeroporto de Ribeirão Preto, uma senhora foi até mim, puxou o braço que eu segurava para falar ao celular e me disse seca: “Pare de falar, eu preciso fazer uma foto com você!”. Bem, sorria, se for capaz...

Vejam: também gosto de fazer registros de lugares bonitos, amigos queridos, cenas que me tocam. Amo enviar fotos ao restrito grupo de pessoas com quem me comunico por celular. Capto uma rara peônia, minha flor preferida, e envio para algumas pessoas que também já me manifestaram a devoção a esse pequeno milagre botânico. Um dia, despertando de madrugada em uma casa à beira da Lagoa da Conceição, em Florianópolis, fui presenteado com um nascer do sol tão espetacular que fiz dezenas de fotos. Era uma apoteose de cores que mudavam a cada minuto e se projetavam nas águas como que urdidas pela paleta de Monet. 

Tenho a sensação de que, de alguma forma como analisou Benjamin, a abundância de imagens é o esvaziamento do olhar. Vemos muito porque vemos pouco, multiplicamos o número em função da superficialidade que dedicamos a cada cena. No livro A Imitação de Cristo, Tomás de Kempis afirma que, se houvesse apenas uma missa no mundo, ela seria muito apreciada, mas, como havia muitas, banalizava-se o ritual (Livro IV, 1,13). 

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Será que se eu tivesse uma única foto de cada pessoa que eu amo, isso a tornaria muito especial? Se a cada viagem eu tivesse um único registro do momento mais marcante e não um álbum no computador com milhares de cenas a cada uso do passaporte? Uma floresta de imagens, um cipoal de fotos que trazem alegria, porém esvaziam significados. 

A reflexão vale para tudo. Lendo medievalistas como Le Goff, aprendi que a biblioteca de um homem-monumento como Agostinho de Hipona era muito menor do que a minha. Contando com menos livros e sem acesso ao Google, o africano plasmou todo o pensamento ocidental.

Vivemos em meio a muitos livros, milhares de fotos, excesso de compromissos, fartura de dados e jejum de análises. Um banquete impressionante para convivas inapetentes e entediados em meio a cliques. “Só mais uma, para garantir.” Afinal, para garantir, exatamente, o quê? Boa semana para todos. 

Opinião por Leandro Karnal
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