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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|Só existe interpretação?

Há um Brasil negativo ou carente e um Brasil visto pelo olhar do autoengano

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Atualização:

O Brasil só vai sair do atoleiro quando aceitar que existe realidade. Richard Moneygrand    Tudo pode ser interpretado! 

Como assim? 

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Ora, guri, até o “nada” é interpretável. Ele pode ser pensado como um buraco negro, um espaço vazio ou um zero, como inventaram os árabes. 

Mas e a morte? 

Claro que ela é interpretável, guri, mas o morto não. O morto não é uma questão de opinião nem de escolha política. Não há golpismo diante do morto: ele apenas é – e como muitas outras coisas indiscutíveis –, ele pode ser apresentado como um absoluto.

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Veja bem, a morte pode ter versões que vão do rotineiro confortador: “foi a vontade Deus”, “libertou-se”, “foi dessa para melhor”, “já foi tarde” a esferas de significado além do trivial e do “aqui e agora” que tornam a vida plausível. Ademais, a morte admite especulações tipo “ele foi envenenado” ou “enfeitiçado”. E por aí vamos no infinito das interpretações, tal como um músico faz com uma partitura. 

Entendo... 

Cada interpretação diz alguma coisa mas, no fundo, enxerga algo que uma outra não viu. Existem múltiplas interpretações porque o fato ocorreu e, no exemplo contundente, o fato é o morto que, dentro do seu não-ser, não pode ser interpretado porque a morte é o fato social mais importante da vida, mas – paradoxalmente – é o único evento que não pode ser socialmente compartilhado. Os mortos não falam ou discutem a experiência de morrer. Essa ausência é o oposto das rotinas que ancoram os mundos conforme acentuavam – desculpe a citação imperiosa – William James e Alfred Schutz.

Isso mesmo guri, o remédio – a racionalização, o conforto a mentira ou a desculpa engendrados pela inteligência ou pela vontade – faz parte da interpretação. E, se não há mais remédio, temos simplesmente que nos haver com o peso de um caixão e com o silêncio ensurdecedor e imoral de quem tem que ser jogado fora porque apodrece. Todo fato irremovível e irremediável como um muro torna-se um “morto” e os mortos podem ser teatralizados ou contados, mas não podem viver novamente. Só se pode voar usando um avião. O avião é um fato ou uma realidade para o voo. Mas podemos voar imaginando e acreditando – aquiescendo –, como diz serenamente William James.

Mas os mortos podem, como reclama a esperança, ressuscitar. Podem ressurgir por meio da literatura e, antes dela, da religião. Saem das ossadas do esquecimento e ganham vida, cor, ação e presença. 

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Guri, você tocou numa esperança e numa promessa feita pelo próprio Cristo que, para mim, é o mais belo compromisso de quantos pude ouvir ou ler. Falo em formoso porque, no dia da ressurreição dos mortos, o paraíso será restaurado nesta terra de dores. Os falecidos deixarão suas tumbas e um Cristo glorioso virá finalmente julgar os vivos e os mortos. A verdade vai se fundir com a beleza e a inteligência, com o desejo.

Então, ah!, guri, então não haverá mais interpretações (com suas crises) porque não haverá mais distinção entre fato e interpretação. Neste dia, ocorrerá a fusão do bem e do mal, do real com o ideal. No Dia do Juízo Final, haverá finalmente a paz de um mundo livre de remorsos, arrependimentos, frustrações, conflitos, pontos de vista, invejas, ódios e medo. O paraíso é a morada de uma só realidade. 

Mas o senhor crê mesmo nisso? Creio não, guri, mas espero com todo o meu coração! Como uma boa noite de sono ou um sonho maravilhoso.

*

Vamos aos fatos. Não há como esconder que o Brasil é o país das mentiras e a pátria das versões. Hoje, eu noto o retorno da tese dos “dois brasis”, de Jacques Lambert e de Ignacio Rangel, para ficarmos com dois pioneiros. A ideia é clara: há um Brasil negativo ou carente e um Brasil visto pelo olhar do autoengano – dos olhos “alienados”. Nele, um “fato” como uma reunião ministerial ou um “escândalo” tem sempre uma “versão oficial” (velada, mistificadora e, hoje, engajada na mais pura, simples e patológica negação) e uma “versão verdadeira” na qual todos os atores e suas intenções surgem nos seus devidos lugares. Você, guri, só sabe a primeira versão e nem suspeita da segunda! Nós, os conhecedores do Brasil e do mundo político brasileiro, um mundo supostamente aparte do restante, onde a mentira é verdade e a insinceridade, a norma, sabemos das múltiplas versões. Aliás, a nossa ética reitera que “não há fatos, somente versões!” Não somos alienadas ou ingênuos... 

Mas o que vocês “sabidos” não contemplam é que o contraponto das versões é uma outra versão... O senhor não acha que isso conduz a uma corda bamba moral e a uma institucionalização do cinismo? Ou a uma suspensão sobre a existência da “realidade” como algo possível ou convencionalmente verdadeiro ou relacionado ao limite? Compreendo que os fatos tem versões, mas e quando o dinheiro acaba? A aversão do Brasil ao liberalismo mais trivial do “eu não posso gastar mais do que tenho” não seria causado exatamente por essa inflação de éticas: uma para cada pessoa, grupo ou situação? 

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Nesse caso, onde está o fato que dá origem à versão? 

PS: Continua, com lances imperdíveis, nas próximas semanas.

Opinião por Roberto Damatta
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