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Shakespeare chega ao Brasil profundo

Gabriel Villela dirige grupo de Natal em 'Ricardo III' no sertão do Seridó, onde o teatro nunca havia chegado antes

Por Dib Carneiro Neto
Atualização:

Manhã de segunda-feira, temperatura já acima dos 30 graus em Natal, capital do Rio Grande do Norte. Três carros saem lotados de atores, técnicos, garrafões de água mineral, pacotes de pão integral, colchões, embalagens com os adereços mais delicados do espetáculo, malas e sacolas, rumo ao sertão do Seridó, região do Estado que foi rota do cangaço e que, além de pedras e cactos, abarca pequenas cidades do nosso Brasil profundo, entre elas, o ponto final da viagem da trupe: o município de Acari, com seus 12 mil habitantes e a 260 km da capital. No dia anterior, um caminhão-baú foi na frente, completamente abarrotado com os instrumentos musicais, figurinos e cenários do que virá a ser, em breve, o espetáculo Sua Incelença, Ricardo III, com o grupo local Clowns de Shakespeare. A estreia está prevista para 18 de novembro, em Natal.

 

 

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Há três meses, a companhia - uma das mais fortes referências do teatro feito no Nordeste - ensaia este que é um dos mais afiados dramas históricos de William Shakespeare (1564- 1616), sob a batuta de um mestre convidado, o diretor mineiro Gabriel Villela. Depois de um breve período de crise, redefinição de elenco e até de rumos, o coletivo decidiu-se por um encenador de fora, com uma bagagem que pudesse enriquecer ainda mais o repertório de sucessos e prêmios de uma trajetória que já beira os 18 anos de palco.

 

Empada doce. Na saída de Natal rumo a Acari, todos combinam de parar no meio do caminho, "naquela padaria de Santa Cruz, pra gente comer empada doce". No trajeto, enquanto arde o sol e estalam galhos retorcidos, os carros passam pela recém-inaugurada estátua de Santa Rita, padroeira da cidade de Santa Cruz. Os atores comentam: "Olha lá, ela é 7 metros mais alta do que o Cristo Redentor do Rio!" Já mastigando a empada de coco da padaria, um dos integrantes dos Clowns não se avexa, aumenta um ponto e turva sua lágrima nordestina: "Olha a Santa Rita, gente, que orgulho, ela é três vezes maior que o Cristo, viste! Foi um rico que alcançou uma graça e prometeu erguer a santa! O prefeito está todo crente de que vai atrair romarias, como em Juazeiro ou em Aparecida."

 

Grupo Clowns de Shakespeare ensaia ao ar livre, ao lado da sede do centro turístico da região, em Acari. Fotos: Pablo Pinheiro/Divulgação 

 

Em Acari, a ideia é fazer o primeiro ensaio aberto do espetáculo de rua, que ainda está inconcluso. O local dos ensaios - ao ar livre, ao lado da sede do centro turístico da região - foi previamente arranjado por uma das atrizes, a hiperativa e falante Titina Medeiros, natural de Acari. "É o meu povo, ai que medo de dar tudo errado... Eles sabem que eu sou atriz, mas nunca me viram em cena, só fazendo comercial na TV daqui, viste?" Titina, repaginada pela arquitetura cênica barroca de Villela, logo mais será vista por seus conterrâneos na pele de uma rainha inglesa que fala e age como uma emergente social, fútil e histérica.

 

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O grupo se instala a 6 km do centro do município, numa vila em torno da Barragem Marechal Dutra, mais conhecida como o Açude Gargalheiras, inaugurado em 1959, na bacia hidrográfica de Ceará-Mirim e atualmente com capacidade de 40 milhões de metros cúbicos. Ali, há uma estrutura deixada pelo DNOCS como equipamento turístico: uma vila de casas contíguas, de fachadas multicores, uma pousada e um casarão com terraço. Quando chove (este ano não choveu) e o açude "vaza" (forma como os nativos se referem ao período da cheia no açude artificial), famílias inteiras de todo o Nordeste correm para ver tanta água.

 

Dona Angelina, moradora da vila, vai ser a mestre-cuca da viagem. Foi instruída a fazer comida leve todo dia. Gabriel Villela, após a primeira refeição em Gargalheiras, distribui as tarefas da tarde: "Babaya (preparadora vocal), você assume a turma agora e revisa com eles todas as músicas e os arranjos, eu vou com os assistentes fazer o reconhecimento do terreno e a Kika (Freire, preparadora corporal) hoje descansa, porque está meio febril desde ontem." A coreógrafa, que veio do Rio especialmente convidada por Villela, retruca: "Mas, Gabriel, eu posso trabalhar hoje, sim: são eles, não sou eu, quem vai subir nas pontas..." Ao que brinca o diretor: "Não dou conta: por que carioca fala tanto S?" Risos gerais.

 

Ronaldo Costa, o iluminador, e Rafael Telles, da produção executiva, se aproximam do diretor com cuidado, para dar uma notícia que pode abalá-lo: "Sabe, é que o disjuntor que você pediu foi instalado no lugar errado, então hoje não vai dar para iluminar nada, amanhã é feriado (terça, 12 de outubro), então somente na quarta é que isso vai se resolver. Para hoje, a gente pode fazer um gato no poste da rua."

 

Público assiste a uma peça de teatro pela primeira vez na vida

 

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Arena grega. Pulo no tempo, que é para acabar com o suspense. Dia seguinte. Fim da tarde, a bola de fogo já foi totalmente apagada no horizonte (escurece a partir das 17 horas). Sopra um vento barulhento, forte, uivante, típico das noites nesta época do ano no Seridó. Sem disjuntor, mas com a bênção dos deuses do teatro grego, com suas pioneiras arenas também descortinadas para a imensidão do céu, termina o primeiro ensaio aberto de Sua Incelença, Ricardo III para a população de Gargalheiras. Uma moradora, dona Jaécia, professora de português, pede a palavra e articula sua emoção, explodindo entre soluços e palmas e surpreendendo a todos os que ainda não confiavam no poder de arrebatamento da montagem: "Nunca vi uma coisa dessas em toda a minha vida, essa miscelânea de teatro e circo, essa linguagem formal de Shakespeare ecoando neste sertão. Não estou acreditando na dimensão disso que vocês vieram fazer aqui na vila."

 

Elenco, diretores e técnicos fungam sem pudor. Descem do alto de suas sabedorias, apoiados em meses de leituras, estudos de teorias, ensaios técnicos no galpão fechado de Natal (sede do grupo), e desfrutam juntos o primeiro êxtase emocional do novo espetáculo que está nascendo em Acari. Plateia e artistas, cada qual se desvirginando a seu modo, desenham um momento mágico e inesquecível de interação entre teatro e vida.

 

Arena no sertão: momento mágico e inesquecível de interação entre teatro e vida

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