Ser atual, ser paradoxal

O filósofo italiano Giorgio Agamben nos legou incisiva e bela reflexão sobre a noção de contemporaneidade. Ele parte de um paradoxo, herdado das Considerações Intempestivas, de Nietzsche: o contemporâneo é o inatual, ou seja, é aquilo que se situa fora do espaço e do tempo entregues ao ser humano pelas circunstâncias.O ser humano não se torna contemporâneo por coincidir com seu tempo, ou por reproduzir-se a si como imitação ou cópia da situação que vive. É contemporâneo ao operar um deslocamento espacial entre ele e a atualidade. O contemporâneo se insere a si no espaço deslocado e no tempo anacrônico a fim de ganhar competência para melhor apreender - paradoxalmente, repita-se - sua época. No espaço/tempo intervalar é que, para qualificar e avaliar a contemporaneidade, se lhe propõe recorrer ao saber profano (a história) e, simultaneamente, ao saber sagrado (a religião).Alerta Agamben: não se instaura a não coincidência entre atualidade e situação para que o homem viva em outra cidade e outro século. Seja um nostálgico, a sentir-se mais em casa na Atenas de Péricles, ou na Paris de Robespierre. O ser humano inteligente sabe que não pode fugir ao seu tempo.O raciocínio de Agamben prossegue sob a forma de duas alusões inesperadas. Elas reforçam e levam adiante a premissa exposta de modo paradoxal na abertura.A moda é a primeira alusão. De caráter profano, a referência a ela esclarece a pertinência da fissura operada no tempo histórico pela intervenção da inatualidade. A lógica exemplar da moda oferece o mirante para se apreciar o modo como o contemporâneo está sempre adiantado ou atrasado. A roupa da moda oscila entre o momento que ainda não chegou e aquele que já não é mais. É reconhecida por todos como algo que ainda não é, que será talvez, ou que já foi."Neste instante estou na moda" - a afirmativa só faz sentido se dita por Gisele Bündchen ao desfilar na passarela. Dita por ela na rua, ao lado do marido, a frase não é paradoxal. É apenas contraditória ou fanfarrona. O tempo próprio à moda - e o próprio à contemporaneidade - se bifurca em um "ainda não" (futuro) e um "não mais" (passado). Ancora-se no espaço entre os dois.A fissura é, pois, o ‘‘entrelugar’’ no contemporâneo onde se relacionam as frações do tempo expostas por ela de modo inexorável. Oferecido pela lógica da moda, o intervalo cria a heterogeneidade na dimensão temporal e serve para que o atual mantenha com o passado e com o futuro uma relação particular, dita por Agamben como sendo a que é proposta pela "citação". Ali, no entrelugar, o contemporâneo pode reevocar e revitalizar, pode reeditorar tudo aquilo que tinha sido descartado por ter sido declarado morto. Enunciado concretamente pela voz de Gisele ao desfilar pela passarela, o lugar da fissura não é o vazio. É o lugar preenchido por compromissos entre as frações do tempo e entre as sucessivas gerações.O contemporâneo é aquele que, ao fracionar o tempo para nele interpolar citações, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com outros tempos, de nele ler de modo inédito a história da civilização.A segunda alusão vem da palavra de S. Paulo sobre a contemporaneidade do Messias. De caráter sagrado, ela traz à baila o "tempo-de-agora", anunciado pelo apóstolo ao se referir ao advento do Cristo para presidir o Juízo Final no fim dos tempos. A referência ajuda Agamben a substantivar o sentido religioso do adjetivo "intervalar" quando aposto paradoxalmente à contemporaneidade. A palavra que nomeia o evento bíblico - "parusia", em grego - significa "presença". Esta religa o tempo fracionado. A "parusia" tem a capacidade singular de colocar em relação consigo todos os instantes do passado, de transformar todo momento ou qualquer episódio da história bíblica numa profecia, ou numa prefiguração do presente.O poeta russo Osip Mandel’stam fornece a Agamben o andaime para um segundo paradoxo, para uma segunda definição de contemporaneidade. Em poema, Osip propõe a correlação entre o tempo da vida de um indivíduo, o de suas vértebras quebradas pelo presente, e o tempo histórico coletivo, o de uma fera cujo dorso está fraturado pela época. O poema diz que, ao soldar com o próprio sangue o dorso fraturado do século/fera, o homem paga a sua contemporaneidade com a vida. Ao manter o olhar fixo no rosto atormentado pela dor do século/fera, o contemporâneo não busca as luzes, mas o escuro, paradoxalmente.Copio: "Todos os tempos são obscuros para quem deles experimenta a contemporaneidade. Contemporâneo é, precisamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente".Perceber o escuro do presente - alerta Agamben com o auxílio dos neurofisiologistas - não é manifestação de inércia ou de passividade por parte do sujeito. Implica a atividade de neutralizar as luzes que provêm da época para enxergar suas trevas, de que são inseparáveis. Contemporâneo é quem recebe no rosto o facho de trevas que provém do seu tempo.A metáfora da escuridão do tempo presente é explicada pelo recurso à compreensão da escuridão das constelações. As galáxias mais remotas se distanciam de nós a uma velocidade tão absurda que sua luz não consegue nos alcançar. Aquilo que percebemos como o escuro do céu é essa luz a viajar velocíssima até nós sem nunca chegar a nos alcançar, porque as galáxias das quais provém se distanciam a uma velocidade superior à da luz.O filósofo comprova sua reflexão com as obras de Michel Foucault e de Walter Benjamin. Aquele afirma que suas perquirições históricas sobre o passado, suas arqueologias, são apenas a sombra trazida pela sua interrogação teórica sobre o presente. Este, que o indicador histórico contido nas imagens do passado só alcançará sua plena legibilidade em determinado momento da sua história.

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Por Silviano Santiago
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