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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Regras e felicidade

Regras são indispensáveis ao convívio social

Atualização:

O aviso para colocar a poltrona na vertical ecoa no avião. Zelosos comissários verificam logo em seguida. Muitas pessoas continuam reclinadas. Com simpatia firme, os funcionários indicam a cada passageiro que siga a instrução de segurança. O rosto estampa um sorriso treinado; por dentro, podem estar gritando: “Não ouviu, sua anta surda!”. Aeroportos e aviões são uma fonte gigantesca de informações claras e didáticas, usualmente ignoradas pelos usuários. Por quê?

Do ponto de vista pedagógico, o excesso de instruções corresponde ao esvaziamento delas. Provas com muitos detalhes de “faça” e “não faça”, como todo professor percebe, costumam perder foco. E-mails de empresa longos, com dezenas de regras, são um convite à não leitura. Nossa Constituição Federal é imensamente maior do que a norte-americana e muito mais exata. Nosso cumprimento da lei é, em média, mais baixo. Nossos artigos da Carta Magna chegam a detalhes inimagináveis para a tradição jurídica do irmão do Norte. Aumenta a precisão? Há controvérsias. A Suprema Corte dos EUA parece menos açodada de processos do que o nosso Supremo Tribunal Federal. Há muitos outros motivos que colaboram para isso. Porém, creio em um axioma: multiplicar texto esvazia a ordem pretendida.

Leandro Karnal Foto: Estadão

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Regras são indispensáveis ao convívio social. Moro num planeta de 7 bilhões de pessoas, num país de mais de 200 milhões de brasileiros, numa cidade (SP) com 12 milhões de corpos compartilhando o mesmo espaço municipal. Se cada um fizer o que deseja, por sedutora que seja a ideia, haverá dificuldades. Em qual medida a norma facilita e em qual momento ela é um ato autoritário e tolo de uniformização? A resposta é sempre complexa.

Existe um primeiro problema da norma que é o consenso. Devemos achar utilidade na regra. Itens desacreditados são um convite à infração. O humano sempre tende ao mais prático. Vejam a grama. O caminho dos passantes será o mais curto, mesmo que pisoteie solo interditado. Com o tempo, será formada uma nova trilha sobre uma área outrora interditada. A água corre para o ponto mais baixo e nós, humanos, caminhamos pelo trajeto mais curto, ainda que ilegal. A coerção cede espaço ao consenso. A mente coletiva é prática. Vossa mercê virou você e deste surgiu o vc da internet. A mesma lógica faz surgir o caminho ilícito no gramado. Expulsem a natureza pela porta, afirmavam os romanos, e ela voltará correndo pela janela.

Quase ninguém acredita que o celular derrube aviões. Muitos de nós soltam o cinto de segurança logo após a voz da comissária ter afirmado que deveríamos permanecer com ele afivelado. Ficamos de pé para pegar nossos pertences de mão antes de o aviso de atar cintos ser desligado. Seria nossa pequena rebeldia, o anarquismo aéreo, o espaço do indivíduo ser ele mesmo, contrariar ordens e dar seu gritinho do Ipiranga na colina solitária do seu assento? Vingança contra um lugar apertado ou um lanche pífio?

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As normas podem ter destino distinto. Quando eu era criança, desconhecíamos o uso do cinto de segurança nos carros. Meu irmão menor nunca sentou numa cadeirinha no banco de trás. A vitória das normas foi lenta, mas vingou. Coerção (multa) e consenso (educação) colaboraram. As coisas mudam. Quando eu vejo os motoristas de Brasília pararem de forma automática quando o pedestre entra na faixa de segurança, entendo que ali houve uma campanha e uma punição na base do processo.

O rio de Heráclito flui sem cessar. Não somos excluídos do tempo e das metamorfoses. Nada foi sempre do mesmo jeito e tudo pode ser diverso. Os otimistas acreditam, com frequência, no papel formativo, o já denominado consenso. Pessimistas enfatizam a coerção. Advogo ambas. Quanto menor o grupo, mais fácil o consenso. Quanto maior e complexo, mais necessária a coerção. Muita educação de trânsito, na escola, na televisão e em casa. Multas para infratores. Trânsito mata e, na escala de valores, multas são remédio leve para doença grave.

Confiança e transparência são essenciais com todos, em especial alunos, filhos e subordinados. Que meu grupo sinta a presunção da inocência como base. Quebrada a confiança, coerção surge de forma clara. Regras claras, de preferência debatidas de forma democrática. Depois, avaliação sobre a eficácia e sentido das regras. Mudanças, quando as normas ficarem obsoletas. O objetivo não é a lei, mas a harmonia social e a justiça como caminhos e a felicidade geral como fim. A lei não se esgota na lei, mas mira na possibilidade de existência equilibrada de todos. Fixação no caráter sacro da lei caracteriza o farisaísmo: o que está escrito fica mais importante do que o que se pretende com aquilo que está escrito.

Por fim: não tratar as pessoas como imbecis que precisem ser monitoradas sempre; não torná-las como príncipes mimados que devam ser desculpadas pela eternidade. Esse parece ser um bom caminho para refletir sobre a família, a escola, as empresas e a sociedade em geral. A observância do equilíbrio entre coerção e consenso não garante o paraíso, mas, certamente, colabora para evitar o inferno. Que o resto da nossa semana seja equilibrado!

Opinião por Leandro Karnal
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